Texto publicado, originalmente, no jornal O Estado de S. Paulo, em 3/12/2000, com o título “Ir à Roma antiga para entender o mundo moderno”. Perniola morreu em janeiro deste ano, aos 76 anos.
O filósofo italiano Mario Perniola, de 60 anos, lança, nesta semana do dia 3 de dezembro de 2000, no Brasil, o livro Pensando o Ritual – Sexualidade, Morte, Mundo (Studio Nobel, 264 págs.), em que reúne ensaios publicados anteriormente em La Società dei Simulacri e Transiti.
“Não é necessário sermos grandes viajantes para perceber que o mundo contemporâneo oferece um panorama no qual está dissolvida a rígida contraposição entre sagrado e profano, entre simbólico e pragmático, entre selvagem e racional”, escreve Perniola em sua introdução.
Para explicar esse mundo contemporâneo, utilizando especialmente os conceitos de trânsito, simulacro e rito sem mito, Perniola recorre “não à Grécia antiga, que constitui o ponto de referência por excelência do pensamento filosófico contemporâneo, mas à Roma antiga, que, na literatura filosófica do século 20, é objeto de arraigada hostilidade”.
Outro momento a que recorre é o barroco, também um período que, por um longo período, esteve distante do pensamento filosófico.
Perniola participa nas sextas-feiras do Café Filosófico da Livraria Cultura. Vai abordar a questão do ritual em Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. O clássico de Sérgio Buarque foi recentemente relançado na Itália. E Perniola, há 18 anos, tornou-se um frequentador do Brasil.
Para o autor italiano, a relação do brasileiro com os ritos e com o corpo faz lembrar a que tinham os romanos. O ritual seria, mais que uma tradição ou um acontecimento coletivo, uma relação de cada indivíduo com o próprio corpo.
Leia abaixo entrevista que o italiano concedeu ao Estado, por telefone, de Roma.
O sr. escolheu como tema do Café Filosófico o livro Raízes do Brasil. Por que razão?
Mario Perniola – Primeiro, porque esse é um livro fundamental para entender o Brasil, ao lado de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, e de Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr. Segundo, porque esse livro, reeditado recentemente na Itália, além da discussão em torno da questão da cordialidade e da polidez, tem uma outra dimensão, que é o debate em torno do rito, um assunto em que o Brasil oferece expressões muito interessantes para pensar.
O que, por exemplo?
Estive no Brasil pela primeira vez há 18 anos. Desde então, procuro voltar pelo menos duas vezes por ano. Encontro no Brasil, especialmente nas cidades que mais visito, Recife e Salvador, uma relação com o rito e com o corpo que me remete ao que ocorria na Roma antiga.
Estudei e aprendi com antropólogos e pesquisadores das religiões de origem africana, como Pierre Verger. Considero o ritual uma espécie de pensamento do corpo, em que a tradição cumpre um papel, mas que é sobretudo uma forma de as pessoas se relacionarem com o próprio corpo.
Para o sr., a civilização romana é uma referência mais importante que a grega. Por quê?
Normalmente, os filósofos olham para a civilização grega como a origem de tudo, e veem Roma como uma repetição de uma tradição. Mas acho que eles supervalorizam os gregos. Para mim, a civilização romana ajuda a pensar a sociedade atual tão ou mais que a grega. Há no meu livro um pouco, o tempo todo, uma polêmica subterrânea contra Heidegger. A filosofia heideggeriana dá uma grande importância à questão da origem, do original. No mundo em que vivemos, o mundo pós-moderno, é o mundo da cópia, da repetição, do simulacro. Ponho em questão essa ideia de originalidade, de criatividade.
O original não existe, então?
Eu acredito que há mudanças, mas que elas ocorrem lentamente. Há formas que atravessam os séculos e se desenvolvem de uma maneira lenta, por isso uso a palavra trânsito.
Mas essa ideia não está bastante próxima da de “repetição diferente”, de Heidegger?
Sim e não, é uma questão delicada. Mas, para Heidegger, há sempre uma valorização da origem, a celebração da criação.
O sr. utiliza a palavra trânsito para discutir a questão do amor e Vênus como uma espécie de padroeira de uma forma de pensá-lo.
Do ponto de vista histórico, temos três formas diferentes de amor. O amor cortês, durante a Idade Média, o amor passional, no barroco, e o amor romântico, no século 19. Mas agora vivemos a crise de todos esses modelos, e a questão que se põe é como pensar o amor atualmente.
Talvez como o amor louco, mostrado pelos surrealistas, André Breton etc. Eu, no entanto, não caminho nessa direção. Acredito, sim, numa participação que implica, aos mesmo tempo, num certo distanciamento. O que parece mais importante, para mim, é um novo tipo de experiência, que talvez poderia ser definida como “sentir de fora”.
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E por que esse amor estaria ligado a Vênus?
A palavra Vênus, inicialmente, não é nem masculina nem feminina. É neutra. Para mim, isso é muito importante: a nova sexualidade, o novo amor vai além da divisão tradicional entre masculino e feminino. Escrevi um livro, O Sex-Appeal do Inorgânico, em que defendo uma nova sexualidade marcada pela distância.
E onde entra a palavra trânsito?
Na nova situação, as opções não seriam apenas o amor romântico ou o libertino. Estaria aberta a possibilidade de caminhar entre esses dois modelos, sem se ter de fixar em nenhum deles.
Uma das poucas imagens que ilustram seu livro é a do êxtase de Santa Teresa. Por quê?
Essa é uma representação do transe, e nesse aspecto o Brasil tem um vasta experiência. É uma experiência muito importante, veja o que se passa em Recife e Salvador. Há uma ligação profunda entre a sensibilidade barroca e esse momento.
E o que é o transe, para o sr.?
O transe, no fundo, não está ligado exatamente ao ritual. Há também o selvagem, mas mesmo neles estão institucionalizados. São restritos a algumas pessoas e situações específicas. Mas todos os outros são um momento particular de processo ritual. Acho que está, assim, ligada a essa perspectiva de distanciamento. O transe não significa ceder seu corpo à possessão de um deus. O que realmente me parece importante, no transe, é a ligação com o próprio corpo, que se transforma numa espécie de vestimenta. Há, assim, algo que liga o transe de Santa Teresa e o que ocorre nas religiões afro-brasileiras.
Haveria algum tipo de herança europeia no transe afro-brasileiro?
Sim, talvez da região do Mediterrâneo, mais dos gregos que dos romanos (risos), nesse caso. Segundo alguns pensadores, o transe se originou nessa região e depois penetrou no continente africano. Aqui na Itália, há o ritual das Virgens do Arco que se parece muito com os rituais afro-brasileiros, sobretudo por seu caráter de confraria.
O sr. escreve que os meios de comunicação de massa, até o momento, negam o caráter de simulacro.
O que eu procuro demonstrar é que, na sociedade contemporânea, estamos além da diferença entre a realidade e aparência. Isso me parece um aspecto interessante, ir além da distinção tradicional entre o real e a aparente.
Para o sr., houve uma importante transformação na sociedade. O que mudou e o que não mudou?
Para mim, o grande momento de transformação foram os anos 60, quando, nos países desenvolvidos, as novas tecnologias, como a televisão, se popularizam. O que se acontece nesse momento? Passamos de uma perspectiva ligada ainda às ideologias para uma outra dimensão, que em outro livro defini como sensologia. A ideologia está ligada, sobretudo, ao pensamento. A sensologia é mais uma certa maneira de sentir coletiva. Parece-me que a nossa sociedade não é mais uma sociedade ideológica, mas uma sociedade sensológica. Sensologia que se apresenta de formas diferentes: nos anos 60 e 70, pela contestação revolucionária, nos anos 80 e 90, uma sensologia cínica. Vivemos agora uma sensologia integralista, ligada ao catolicismo. Mas isso não significa um retorno da religião. Não acredito que o jubileu desse ano significa o retorno da fé. É uma sensologia religiosa.
E qual é o significado desse “retorno” da fé?
Não é um retorno, é uma maneira de sentir, uma maneira de sentir coletiva. A diferença é que isso pode mudar muito rapidamente, é algo em movimento, sem raízes. Podemos definir nossa sociedade como uma sociedade da credulidade: uma sociedade que, num certo sentido, não acredita em nada; e, em outro, acredita em tudo. Um exemplo é a volta da superstição: não importa qual.
Não faz muito sentido perguntar isso a um filósofo, mas o sr. vê isso de um modo positivo ou negativo?
O que posso dizer é que, apesar de tudo, sinto-me contente de viver nesse momento.