Em suas últimas eleições presidenciais, brasileiros e argentinos decidiram seguir caminhos políticos bastante diferentes. O Brasil elegeu a extrema-direita de Jair Bolsonaro. A Argentina preferiu resgatar a linha mais progressista do peronismo, com Alberto Fernández. A diferença entre os dois sempre foi evidente, mas as consequências dessas escolhas ficaram mais claras agora, que os dois países e o mundo inteiro passam por uma pandemia com potencial de ser uma das mais terríveis da história.
Este domingo (29/03), mostrou bem claramente como os dois países estão em situação bem diferente no enfrentamento da pandemia. Pela manhã, Jair Bolsonaro saiu para passear por Brasília. Se aproximou das pessoas, estimulou aglomerações que geram maiores probabilidades de contágio, exatamente aquilo que as autoridades de saúde dizem que deve ser evitado.
Durante a noite, em Buenos Aires, Alberto Fernández deu um discurso magnífico, no qual estendeu a quarentena obrigatória por mais duas semanas, agradeceu à população pela disciplina mostrada até agora, anunciou um plano para enfrentar economicamente esta situação e também enquadrou empresários que tentam se aproveitar da pandemia, seja aumentando preço de produtos ou despedindo trabalhadores que estão em isolamento.
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As diferentes posturas dos dois governos ilustram o cenário para quem tem dificuldade em entender o significado de escolher esses caminhos ideologicamente diferentes.
No caso do brasileiro, a postura de negação adotada por Jair Bolsonaro é uma das razões pela qual o Brasil terminará este mês de março como o país da América Latina com maior número de casos (o único a se aproximar dos 5.000) e de mortes (o único a se aproximar das 200). Também é um dos poucos países do mundo que tem mais mortos do que recuperados: 140 vítimas, contra 120 curados, até o dia 29 de março.
O governo de extrema-direita é responsável por esses números, e não só pelo fato de que a comitiva da última (de muitas) viagem aos Estados Unidos foi um dos vetores que introduziu o vírus no país. Há indícios para pensar que o próprio presidente chegou a ter o vírus, embora sem desenvolver sintomas. Mas, mesmo que isso não seja verdade, a questão central é a forma como ele e o bolsonarismo de uma forma geral tratam o tema, priorizando os aspectos econômicos, e ainda assim, não esses aspectos como um todo, observando também a situação dos trabalhadores, mas sim os interesses econômicos específicos de certos setores do empresariado, que parecem exigir que seus lucros não sejam afetados pela pandemia.
No caso argentino, também há uma grande preocupação com a economia, e não é para menos: o governo neoliberal de Mauricio Macri deixou uma dívida de dezenas de bilhões de dólares, uma inflação descontrolada, o dólar em disparada, o setor produtivo debilitado, o Estado em frangalhos. E com tudo isso, ainda por cima aparece uma pandemia. Antes de o coronavírus chegar ao país, Alberto Fernández desenhava um plano para levantar o país economicamente a partir da recuperação do setor produtivo. Para isso, precisava reaquecer o consumo, e diante dessa estratégia, a última coisa que precisava era de um país parado.
Casa Rosada/ Palácio do Planalto
Fernández e Bolsonaro: posições antagônicas no coronavírus
No entanto, quando se viu diante da necessidade de colocar a saúde da população em primeiro lugar, ele não titubeou, inclusive se isso significava atrasar os interesses de sua própria política econômica.
Ainda é cedo pra dizer se seu discurso deste 29 de março entrará para a história, é preciso ver como e quando a Argentina e o mundo sairão dessa pandemia, mas a verdade é que o Fernández foi firme e corajoso ao encarar alguns setores concentrados do empresariado. Especialmente quando prometeu sancionar aqueles que despedirem funcionários que estão em quarentena, e quando disse: “existe a hora de ganhar menos, não de perder dinheiro, porque vocês não vão perder dinheiro. Chegou a hora de vocês ganharem menos”.
Muitas pessoas, até mesmo em bairros de classe média e média alta de Buenos Aires, foram às varandas aplaudir seu discurso pela televisão. Não há a possibilidade de ir às ruas para demonstrar esse apoio, e mesmo assim, está claro que o povo está do lado do presidente.
Esse apoio a Fernández também se fortalece porque os números mostram que sua escolha pelas vidas tem dado resultados. A Argentina teve seus primeiros casos antes que o Brasil, e ainda não chegou aos mil infectados: são 820 casos, 23 falecidos e 228 pacientes recuperados, até o dia 29 de março.
Poderíamos fazer uma análise mais ampla de como governos de direita e esquerda estão reagindo a pandemia, até porque países como Cuba e Venezuela também estão fazendo um papel correto e contendo a propagação do vírus em seus países, mas seria errado dizer que toda a esquerda está se portando bem, justamente porque o único país de governo progressista a falhar em sua reação é o do México, onde o presidente Andrés Manuel López Obrador teve, no começo, uma postura negacionista similar a de Jair Bolsonaro. Por sorte, para os mexicanos, começa a cair na realidade, esperemos que ainda a tempo de evitar uma tragédia para o seu país e para o seu governo.
Do lado da direita, também há quem esteja tomando as medidas corretas, e quase em sintonia com Fernández, como é o caso do Peru de Martín Vizcarra.
Não poucos analistas anunciaram este 2020 como o ano em que Jair Bolsonaro e Alberto Fernández disputariam a liderança na região pelos próximos anos. Se é assim, até o momento, o argentino vai ganhando de lavada, e não só a nível latino-americano.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) acaba de incluir a Argentina entre os países que vão participar dos experimentos para o desenvolvimento de um tratamento para o covid-19, e isso graças a uma excelente intervenção do presidente em uma reunião dos líderes do G20 na semana passada – a qual Bolsonaro não participou – aliás, também impediu Luiz Henrique Mandetta de participar de uma conferência com ministros da Saúde de vários países.
Se o dilema entre Pelé e Maradona tende a eternizar-se como o do ovo e da galinha, este entre Bolsonaro e Fernández parece ser de muito mais fácil resolução.