A imprensa e as redes sociais têm enfrentado dificuldades em focar a atenção, que pula entre a pantomima da CPI da Pandemia, as denúncias pelas forças policiais e da alfândega norte-americanas da quadrilha internacional especializada em contrabando de madeira ilegal, capitaneada pelo ministro do desmatamento Ricardo Salles e as pesquisas que mostram um aparentemente irresistível ascenso de Lula e consequente derretimento de Bolsonaro e da terceira via.
Com oferta abundante e tentadora de sensações imediatas, perde-se o de sempre: a capacidade de distinguir o fundamental e, sobretudo os vínculos entre os vários focos de notícias.
Estamos, à esquerda, habituados a falar de um consórcio entre diferentes setores mobilizados para a efetivação do golpe, iniciado ainda na primeira gestão Dilma e que resultou no seu impeachment, no interregno Temer e na eleição do genocida.
Não apenas nós, à esquerda, mas também outros setores foram se rendendo às evidências de que um bloco se formara incorporando os interesses do agronegócio, do grande capital financeiro e empresarial, de vastos setores dos aparelhos de Estado, da magistratura e do Ministério Público, da mídia corporativa, do neopentecostalismo empresarial e, last but not least, do império, inconformado com o pré-sal, com a postura diplomática independente do Brasil dos BRICS e com a concorrência das grandes empresas brasileiras de consultoria e infraestrutura na África e na América Latina.
Graças a pesquisadores ou jornalistas, a maioria nos meios independentes e alguns bravos na big press, vamos conhecendo melhor as imbricações entre entes setores e percebendo que seu caráter heteróclito é apenas aparente.
Isac Nóbrega/PR
Sofremos um golpe urdido no estamento militar que vem utilizando o ex-capitão para seus próprios fins
Pelo trabalho, acadêmico no sentido forte, de Piero Lerner, João Roberto Martins e muitos outros, aprendemos que, mais do que a adesão militar a Bolsonaro, sofremos um golpe urdido no estamento militar que vem utilizando o ex-capitão, enquanto ele for útil, para seus próprios fins.
O jornalismo corajoso e imprescindível de Alceu Castilho e do seu De olho nos ruralistas nos mostra as relações, para a maioria de nós, desconhecidas entre protagonistas do desmonte do Estado e interesses pessoais e familiares com o banditismo rural das grilagens e desmatamentos, como nos casos do novo e quase anônimo prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, cuja família tem “interesses” no Mato Grosso e do notório ex-ministro Eduardo Pazuello, cujo irmão tem intensa folha corrida de irregularidades fundiárias no…(surpresa!) Amazonas.
Para que nos serve tudo isso? Para lembrar que a expectativa de que diferentes setores do empresariado desembarquem do bolsonarismo não é tão banal, pelo simples e bom fato que não são tão “diferentes setores”. Também porque eles ainda têm muito o que arrancar de Bolsonaro e Paulo Guedes, vide as privatizações em curso.
E mais importante: para evitar a tentação de relaxar porque Lula vem aí e vai resolver nossos problemas. Com Jango a esquerda tinha a desculpa de acreditar no famoso e inexistente “dispositivo militar da Presidência”.
E nós?
(*) Carlos Ferreira Martins é professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.