Gustavo Borges/Opera Mundi
Vencida pela reação popular, tentativa de golpe da oposição contra Chávez acabou aumentando a divisão política na Venezuela
“Estava agitado, abalado, paralisado, algo ia explodir dentro de mim”. Esses eram os sentimentos de Leandro na manhã do dia 12 de abril de 2002. Morador do bairro Los Frailes de Catia, reduto chavista localizado no oeste de Caracas, ele “sentia uma rebeldia por dentro”. “Não podia aceitar o que aconteceu no dia anterior. Era um sentimento geral: saía no bairro, no mercado, na rua e todos estávamos assim. Havia um ambiente insuportável, tenso. Algo ia explodir”.
Leia também:
Golpe de Estado que fracassou em derrubar Hugo Chávez completa 10 anos
No dia anterior a que Leandro se refere, 11 de abril, uma marcha com milhares de opositores havia sido desviada em direção ao palácio de Miraflores depois de dias tensos de agitação midiática, greves patronais e pronunciamentos militares contra o governo de Hugo Chávez. Com isso, o poder econômico deu um golpe de Estado e fez o presidente prisioneiro. O golpe durou menos de dois dias, mas suas consequências são sentidas até hoje na Venezuela.
* * *
11 de abril
“Lembro que meu filho e eu assistíamos televisão em casa. Desde os dias 9 e 10 de abril, os escuálidos (como são chamados os oposicionistas) convocavam concentrações em Chuao e Parque el Este, mas acreditávamos que não ia passar disso, mais uma concentração. Mas, no dia 11 de abril, vimos pela tela da televisão como chamavam essa multidão de pessoas para marchar até Miraflores. Quando começou a marcha do Leste até o centro de Caracas, já não havia lugar para dúvida, iam nos enfrentar”, relembra Leandro.
Los Frailes de Catia fica a poucos minutos de ônibus de Miraflores. O palácio presidencial está rodeado de dezenas de setores populares, que apóiam o programa de governo de Chávez, que Leandro chama de “a revolução bonita”.
“Nesse dia, meu filho e eu não pensamos duas vezes. Ao ver o que se passava pela televisão, decidimos ir à ponte Llaguno, ou a Carmelitas, como dizemos. Lembro-me que tivemos que descer do ônibus na Água Salud, na avenida Sucre, porque os veículos não conseguiam passar além da Igreja Paguita, que fica a poucos metros do Palácio de Miraflores”, recorda Leandro. “E assim continuamos a pé, sem falar nem conversar, mas muito certo de onde íamos: enfrentar a pretensão dos ricos de roubar nossa revolução bonita”.
Gustavo Borges/Opera Mundi
Vista do bairro LosFrailes de Catia, reduto chavista localizado no oeste de Caracas
* * *
“Como me sentia em 12 de abril, é essa sua pergunta?”. María não lembra desses dias sem lágrimas nos olhos. Fala da cozinha em sua humilde casa no Bairro Santa Rosa de 23 Enero. “Pois chorando, lembro assim, com um grande sentimento de orfandade e impotência. Sim, creio que isso descreve bem”.
Em 11 de abril, María estava com o marido, Juan Ernesto, e a filha, María Isabel, no centro de Caracas, antes de a marcha oposicionista tomar os arredores do Palácio de Miraflores. “Decidimos descer. Se eles viessem tirar o que é nosso, não iríamos deixar tão fácil. Lembro-me pregada nas grades da Assembleia Nacional, dizendo aos deputados que tínhamos que fazer algo, que não iríamos abandonar o presidente, que não podiam permitir que essa gente cheia de ódio chegasse até Miraflores”, conta.
“Lembro de um deputado que se aproximou nos disse: 'Senhora, tranquilize-se e vá para sua casa, é melhor, estar aqui não é seguro para você e sua família'. Mas ali ficamos, com as pessoas dos bairros, cada vez chegavam mais e mais, como eu, chegavam muitos deles com suas famílias”, lembra Maria. “Até que começaram os disparos… um, dois, três”.
* * *
12 de abril
“No dia 12, o metrô foi nossa válvula de escape”, conta Mauricio. “Tivemos que conseguir formas de drenar tanta impotência pelos acontecimentos do dia anterior. Saímos do bairro nesse dia, pelas duas da tarde, decididos a fazer algo, ainda não sabíamos o que. Pegamos o metrô sentido leste em silêncio, os vagões estavam um pouco cheios, mas havia pessoas. O ambiente era tão tenso quanto o que havíamos deixado para trás no bairro. De repente, Aníbal, um de nossos companheiros, se levanta do assento e começa a falar para as pessoas que iam no vagão: 'Senhores, não podemos ficar assim, sem fazer nada, temos que reagir. Isto foi um golpe de Estado, um golpe contra o povo, contra os sonhos, um golpe no que estávamos construindo, é um golpe de Estado, senhores. Temos que sair às ruas, quando chegarem em suas casas falem com sua família, seus filhos, seus esposos e esposas, com seus vizinhos. Precisamos sair na rua e defender o que nos tiraram'.
“Foi como um sinal. Imediatamente, meu outro companheiro e eu saímos do vagão e tomamos outro diferente. Em cada um deles repetíamos o discurso de Aníbal. As pessoas respondiam fazendo sinal de consentimento com a cabeça, com o olhar ou só escutavam como se estivessem refletindo”.
“Nesse dia, pudemos drenar um pouco nossa impotência e frustração do dia 11. Lembro como nesse dia ficamos até as sete da noite nas imediações do Palácio de Miraflores. A Polícia Metropolitana disparava contra nós da avenida Baralt, a marcha da oposição estava longe, o enfrentamento não era com eles, era com os policiais e agentes políticos da oposição que chegaram armados e que descarregavam seu armamento contra os que estavam na ponte Llaguno e abaixo, na avenida. De manhã cedo, já nos demos conta de que tudo estava montado para um golpe de Estado. Os acontecimentos dos dias anteriores haviam dado indícios suficientes do que se aproximava: um choque de trens, o encontro na rua entre os ricos e os pobres, entre o Leste e o Oeste. Havíamos entrado na ponte a cem metros do palácio presidencial, ali havia se tornado nossa trincheira de proteção e resposta ao ataque e ao avanço da Polícia Metropolitana que disparava contra nós em uma tentativa de abrir o caminho para a marcha da oposição para que esta avançasse até Miraflores. À tarde, vimos como muitos de nós caíam no chão com disparos na cabeça, no pescoço ou nas costas. Estavam nos massacrando do terraço dos edifícios”.
* * *
Leandro e seu filho chegaram às 11h nas imediações de Miraflores depois de percorrerem um bom trecho a pé. No caminho, centenas de homens e mulheres tinha o mesmo destino. “Quando chegamos, o enfrentamento já havia custado várias vidas. A confusão era total: ruas incendiadas com barricadas, pessoas que corriam de um lugar para o outro tentando fugir dos disparos que saíam de todos os lados e um grupo se defendendo do alto da ponte. Pudemos observar os danos que os marchistas da oposição haviam causado em sua passagem pelo centro de Caracas. Muros arrancados para utilizar as pedras como armas, montes de lixo incendiados, vidraças destroçadas, ruas cobertas de paus, escombros e barricadas. Vimos um grupo de uns cinco homens tentando ajudar um ferido, tentavam acordá-lo, tentavam reanimá-lo, ou que pelo menos não deixar que desfalecesse. O homem, com marcas de pintura vermelha na cara e um bracelete da mesma cor no braço esquerdo, identificações daqueles que defendiam o palácio, tinha um buraco no peito e outro em um braço. Os demais cuidaram dele e escutei que o levariam a Miraflores, onde provavelmente havia um lugar para primeiros socorros. Haviam enlouquecido, pensei. Muitas das pessoas que haviam estado desde cedo já começavam a voltar a pé, uma longa marcha de regresso ao bairro. Com um forte sentimento de raiva, desconcerto e incerteza, nos unimos à ela. Não tinha o que fazer. De longe, continuávamos escutando os disparos”.
* * *
13 de abril
“No final, demos meia volta”, relata María. “As pessoas que estavam voltando de Miraflores e da avenida Baralt nos diziam que havia muitos mortos e senti medo por minha filha e por meu esposo. Chorei muito. Por isso lembro do 12 de abril chorando. E mais ao ver tudo o que estava acontecendo pela televisão, essas pessoas, eles, os ricos nos tirando tudo. Todo o bairro estava assim, triste, sem se mover, colado na tevê, vendo o saque que a revolução dos poderosos estava fazendo”, desabafa. “Sabe de uma coisa? Sabia que algo ia acontecer, não íamos suportar, e por isso explodiu o 13. Sabe quando soube que não iríamos ficar tranquilos? Quando soou o panelaço na paróquia, todas as pessoas saíram para bater suas panelas, suas latas, o que fosse. Você as via nas janelas, nas portas ou simplesmente na rua batendo suas caçarolas. O barulho era ensurdecedor. Ali soube que sairíamos de novo”
* * *
Em 13 de abril, Leandro conta que foi cedo ao 23 de Enero, bairro próximo ao Los Frailes, desta vez sozinho, já que havia se arrependido de ter levado seu filho ao enfrentamento no dia 11. “Cheguei a me encontrar com alguns amigos que, na noite anterior, haviam me falado que iam tomar providências, mas não os alcancei. Em vez disso, encontrei multidões de pessoas que já começavam uma marcha em direção ao palácio presidencial, era como se houvesse uma só voz, todos só diziam 'Vamos a Miraflores' e me juntei a eles, sem os amigos com quem havia conversado na noite do dia 12. Eram primeiramente centenas, mas à medida que avançávamos pelas ruas de Monte Piedad, em direção ao Silencio, me dei conta de que eram milhares. Saíam de todos os lados, dos becos, dos edifícios, das casas e se juntavam à marcha. Lembro que o lema mais gritado era 'Chávez não renunciou, está sequestrado!' Íamos de novo rumo a Miraflores”.
Chavistas celebram retorno do presidente ao Palácio de Miraflores:
* * *
Nesse dia 13, a Polícia Metropolitana tinha tomada a avenida Sucre – conta Mauricio. Disparavam sem cessar em direção ao 23 de Enero, de onde lhes respondiam. “Tínhamos a informação da quantidades de pessoas que desceu dos bairros rumo ao palácio presidencial, e que as forças de segurança aliadas aos golpistas as mantinham nesse setor, impossibilitando que continuassem seu percurso. Nós aproveitamos que as pessoas do 23 de Enero mantinham os guardas ocupados e, para responder o ataque, conseguimos nos unir em uma avalanche de bairros que vinham chegando de todos os lados, da Pastora, Lidice e Manicômio. Chegaríamos exatamente ao lugar do enfrentamento, mas devido à localização do 23 e do bairro por onde estávamos descendo, as forças policiais ficariam entre dois fogos, um na frente que era o que combatiam nesse momento, e um inesperado de onde nós vinhamos. E assim foi. A briga não durou muito. Nós os derrotamos pela força e em número, e se puseram em retirada recolhendo seus feridos. dessa forma, abrimos passagem às diferentes marchas que desciam dos morros rumo a Miraflores, a poucos quilômetros de nós. Em poucos minutos éramos centenas”.
* * *
“Foi o dia mais maravilhoso da minha vida”, continua María. “Nesse dia, quando chegamos a Miraflores e vimos todas as ruas cheias de gente, chegavam de todos os lados gritando “queremos ver Chávez, queremos ver Chávez”. Outra vez estávamos ali os três, meu marido, minha filha e eu, mas as circunstâncias eram outras. Pelos auto-falantes, davam a informação de que uma brigada de pára-quedistas muito forte havia se pronunciado a favor de Chávez e que estavam perto de resgatá-lo. Também conseguimos escutar como alguns generais na Fuerte Tiuna se uniam ao povo desses setores que haviam avançado até as grades. Começaram a aparecer ali, em frente a Miraflores e entre a multidão de rostos desconhecidos, ministros, prefeitos, deputados que estavam escondidos. Dentro do palácio, os soldados haviam levantado e tomado militarmente suas instalações a favor de Chávez. Nesse dia ganhamos. Ali fiquei até as dez da noite.Vimos pela televidão a volta de Chávez, sua chegada e suas palavras. Lembro muito quando dizia “voltem a suas casa, todos, voltem a suas casas”. Ele já estava em sua casa novamente.
NULL
NULL