Tinha 21 anos quando fui presa, mas parecia bem menos. Era uma garotinha de classe média que sorria para as fotografias – como suas filhas, Candida, como suas sobrinhas, Suraia, como seus netos, Tereza. Era mais jovem que suas filhas, Mário Sérgio, tinha pouco mais que seu irmão mais novo, Leonardo. Recentemente, um jovem jornalista me perguntou o que fazia naquele tempo gente como eu. A pergunta me deixou perplexa. Minha primeira reação foi dizer: nada. Líamos longos documentos chatíssimos, fabricados em mimeógrafos clandestinos (precisaria talvez explicar o que era um mimeógrafo), e livros encapados com capas neutras para não serem identificados. Livros que hoje a democracia permite que sejam vendidos em qualquer livraria, mas que naquele tempo eram proibidos: Marx, Engels, Lenin, Mao, Lukács – em doses tão indigestas que hoje eu teria/tenho dificuldade em retornar a essa literatura. Encontrávamos uns com os outros em “pontos” e fazíamos reuniões clandestinas para falar do que líamos. Havíamos sido clandestinizados pela ditadura.
Fui presa em outubro ou novembro de 1971, já não lembro mais. Uma queda “de massa” – não sei quantos éramos, éramos muitos – acusados de estarmos preparando uma comemoração dos cinquenta anos da Semana de Arte Moderna de 1922. Era proibido. “Caí” por imprudência e por inexperiência, cobrindo um “ponto” a pedido de um companheiro mais conhecido que eu. Havia sido avisada de que poderia haver problema, mas não integrei a informação. Foi na Avenida Antonio Carlos, na frente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Dois homens me pegaram pelo braço, me colocaram num carro banalizado e me levaram para a rua Barão de Mesquita, onde funcionava o DOI-CODI (Departamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), um centro de tortura do Exército brasileiro. Fui introduzida no que era certamente um subsolo, posto que sem janelas (a expressão “porões da ditadura” deve vir daí). A iluminação era mortiça. Fui posta numa cela gradeada, deram-me um macacão largo, de pernas curtas, e mandaram que eu entregasse toda a roupa com que havia chegado. Lembro-me de ter virado para a parede para trocar de roupa, num pobre gesto de pudor: mesmo de costas, eu podia ser vista pelas barras largas da cela. Entreguei a roupa e me lembro de ter sentido sede.
Não sei quanto tempo demorou até que viessem me buscar. Perdi rapidamente qualquer referência temporal. Li uma vez que isso era um efeito induzido pelas condições da prisão. O certo é que, em dado momento, fui levada para uma sala onde havia muitos homens. Nenhuma mulher. Uma luz branca, muito forte, contrastava com a luz mortiça da cela onde eu estava antes. Meu macacão foi retirado – já não sei mais se por mim ou por eles. Fiquei inteiramente nua. Vários fios foram conectados ao meu corpo – aos dedos das mãos, dos pés, aos bicos dos seios, à vagina. O choque deixa na pele marcas de queimadura que duram muito tempo. Ainda tinha essas marcas alguns meses depois, quando saí da prisão. Não sei bem como a máquina dos choques funcionava. Acho que alguém rodava uma manivela, mas não tenho certeza. Os homens urravam: “ponto” e “aparelho”. “Ponto” eram os encontros que tínhamos uns com os outros. “Aparelho”, as casas onde morávamos ou onde nos reuníamos.
Reprodução/Acervo Estadão
Reportagem censurada no jornal O Estado de S.Paulo, de 1974, fala do desaparecimento de Fernando Santa Cruz
Quando a máquina é acionada, a corrente atravessa o corpo e produz espasmos incontroláveis. Lembro que gritei muito. Ouvia meus próprios gritos. E sentia que gritava para me defender. Fui posta numa cadeira elétrica. Acho que se chamava “cadeira do dragão”. No meio daquela massa indistinta de homens, lembro de duas figuras: um jovem alto, bronzeado e musculoso, que eu soube depois chamar-se Tenente Ailton; e um homem mais velho, de bigode, chamado Nagib – ao que parece, médico, porque havia médicos que assistiam às sessões de tortura para que elas durassem o máximo possível, sem matar o paciente. Não sei quanto tempo durou tudo aquilo nem sei mais exatamente como terminou. E nem vem ao caso. Meu grau de periculosidade para o regime era o que descrevi acima e o da massa de estudantes que foi presa comigo, também.
Minha mãe logo soube da minha prisão. Ela tinha voltado pouco tempo antes da Alemanha e acho que andava preocupada. Naquele dia, sem razão alguma, largou subitamente da cadeira do dentista, movida pela intuição de que algo havia acontecido comigo. Mãe é assim. A confirmação veio em casa. Então ela começou a mover céus e terra para me encontrar. E foi assim que conheceu Zuzu Angel – em casa de um amigo comum. Zuzu estava batalhando para encontrar seu filho desaparecido, Stuart. Em verdade preso e morto em junho de 1971, em condições bárbaras, nas dependências de um outro centro de torturas, o Centro de Informações da Aeronáutica, no Galeão. A história de Stuart é conhecida porque uma testemunha relatou. Ele foi amarrado a um jipe, obrigado a respirar gases do tubo de escapamento, seu corpo arrastado pelo pátio até morrer. As convenções internacionais protegem os prisioneiros de guerra, mas a ditadura brasileira jamais as respeitou. Ao ouvir a história de Zuzu, minha mãe teve, segundo contou depois, um “ataque de loucura”. Zuzu Angel foi assassinada em 1976, num “acidente” de carro provocado pela ditadura, conforme depoimento do hoje pastor Claudio Guerra. Seu crime, Teresa, foi ter “enchido o saco” do regime, lutando para reaver o corpo de Stuart.
Meus pais apoiaram o golpe de 1964. Eles achavam que Jango ia implantar uma ditadura comunista no Brasil. Logo o Jango! Eles próprios tinham sido comunistas e, com toda razão, não tinham digerido o relatório Kruschev sobre os crimes de Stalin1. Só não entenderam de onde vinha o perigo. Para evitar uma ditadura comunista, ajudaram a implantar uma ditadura militar sangrenta, que durou vinte anos. Pagaram por seu erro de diagnóstico. Em 1968, minha mãe estava conosco na rua. Meu pai foi preso no AI-5, quando os militares invadiam o jornal que ele dirigia disparando rajadas de metralhadora. O Correio da Manhã, jornal que deu o sinal para o golpe contra Jango com dois editoriais, Basta! e Fora!, não sobreviveu à obra de cuja construção participou. Havia se tornado a principal voz da resistência e isso, o regime não perdoou.
Não sei por que estou contando tudo isso a vocês. É a primeira vez que falo da tortura. Fiz mais de dez anos de análise e isso jamais foi assunto. Sempre um pudor muito grande e um desinteresse emocional, porque o que me aconteceu não foi nada, face ao que aconteceu a pessoas como o Stuart. Mas o comentário sobre as condições de prisão da Miriam Leitão, feito pelo campeão de vocês; e depois sobre Fernando Santa Cruz, cujo corpo, como o de Stuart, jamais foi entregue à família – confesso que tudo isso mexeu comigo de um jeito que nunca imaginei. Acho que, para vocês, isso não muda nada. Mas eu também acho que tenho um dever para com a nossa memória coletiva. Ela está sendo violentamente atacada. E a terra não é plana. #Ditaduranuncamais
(*) Angelina Peralva é professora emérita de sociologia na Universidade Toulouse Jean Jaurès, na França
1 O pai de Angelina, Osvaldo Peralva, foi dirigente do PCB e rompeu com o partido após o processo de desestalinização da União Soviética, ao final dos anos 1950; é autor do livro O Retrato (Ed. Três Estrelas).