A revolta social no Chile saiu dos noticiários brasileiros, mas não acabou. A diminuição da presença nas ruas tem muito a ver com a preparação dos diferentes setores sociais para as campanhas para o plebiscito do dia 26 de abril, que perguntará aos chilenos se querem ou não uma nova Constituição e qual a fórmula na qual pretendem que essa nova Carta Magna seja construída.
Opera Mundi conversou com constitucionalista chileno Jaime Bassa, professor de Direito da Universidade de Valparaíso, diretor do CEPC (Centro de Estudos Políticos e Constitucionais de Valparaíso) e um dos juristas mais engajados no movimento por uma Assembleia Constituinte em seu país.
Essas são suas impressões sobre o processo constituinte que, segundo ele, o Chile já está vivendo, desde outubro passado:
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Opera Mundi: Que perspectiva você tem do processo constituinte que poderia se iniciar no Chile após o plebiscito?
Jaime Bassa: Na verdade, o processo constituinte já começou, com as mobilizações sociais instalando muito fortemente essa necessidade. O que nós vamos ter no Chile neste 2020 é a formalização de um processo de substituição constitucional que nasceu do anseio popular expressado nas ruas. E claro, este processo é uma oportunidade inédita para o Chile em sua história. É um desafio que temos como país e como povo, e também é um desafio para os políticos. Teremos todos que pensar democraticamente quais serão as novas bases para a convivência pacífica da sociedade, e é a primeira vez na história do país que poderemos ter essa oportunidade sem estar em meio a uma guerra civil ou um golpe de Estado.
Como você avalia a possibilidade de que as organizações sociais possam participar do processo constituinte? Como você acha que se trabalhou nos últimos dias para garantir (ou não) essa participação?
Uma das grandes dívidas deste processo até agora é participação da cidadania, dos setores independentes, e isso se explica, em grande medida, pelas próprias debilidades do sistema de democracia representativa do Chile, que permite a criação de uma classe política, um grupo que ocupa quase todos esses cargos de representação. No entanto, nos últimos meses temos visto esforços importantes da institucionalidade para reconhecer e incorporar essa cidadania, e são avanços que creio estarem indo pelo caminho correto. Há uma reforma legal em curso, para que os candidatos independentes dos partidos políticos tradicionais possam participar em igualdade de condições com os políticos tradicionais. Ainda há algumas coisas que podem melhorar, como a aprovação de um mecanismo de financiamento público das campanhas, para que essa igualdade entre partidos e independentes seja maior, mas é algo que ainda está por ser conquistado.
Wikicommons
Processo constituinte visa desmercantilização dos direitos sociais, diz Jaime Bassa
Quando foi anunciado o acordo no Parlamento, surgiu uma dúvida sobre se o processo de redação seria ou não a partir do zero. O senador Andrés Allamand, um dos principais líderes da campanha contra a nova Constituição, assegura que, numa Assembleia Constituinte, nas matérias onde não exista quórum seguirá vigente o que está determinado pela atual Carta Magna. Que opinião você tem sobre essa controvérsia?
A lógica da folha em branco é o que permite que estejamos falando de um processo constituinte, de uma nova Constituição, e não uma reforma à Constituição atual. Pensar que existem normas atuais que possam se manter através dos tempos é uma lógica das reformas constitucionais. Não de uma nova constituição. O argumento do senador Allamand representa o pensamento de um setor político que se enfrenta ao temor de perder seus privilégios e também o controle político do processo constituinte, e ver a cidadania tomando esse controle. A única forma em que a atual Constituição possa se manter vigente é se o processo constituinte fracassar.
Quais são as chances de a nova Constituição ser rejeitada no plebiscito de 26 de abril? Quais seriam as consequências dessa derrota?
Creio que é pouco provável que essa rejeição aconteça, porque existe uma maioria muito grande da sociedade que entendeu que a forma de resolver os problemas e demandas sociais dos últimos tempos é fazendo uma nova Constituição. Nesse sentido, os setores políticos ligados ao governo já começaram a fazer uma campanha antecipada, antes mesmo do início da campanha oficial (que será a partir de meados de fevereiro), baseada no discurso do medo, de gerar um temor na cidadania sobre o que seria uma nova Constituição. Se essa campanha der resultado, o cenário seria bastante incerto, e seria difícil prever o que poderia ocorrer, porque um resultado assim tampouco legitimaria a Constituição vigente, mas sim levaria a um aumento do mal-estar social e faria com que essa revolta social que vemos agora se reproduza novamente no futuro. O processo histórico que o Chile está vivendo faz com que seja irreversível a necessidade de uma nova Constituição, e a necessidade de que o povo participe ativamente na determinação de suas novas estruturas de poder.
Os mais otimistas dizem que a revolta social iniciada em outubro levará a um Chile que sepultará definitivamente o legado da ditadura de Pinochet. Você concorda com essa previsão? Que resultados você espera do processo que o Chile vive hoje?
Efetivamente, no dia 18 de outubro se abriu um novo ciclo histórico no país, que poderia significar o fim do que nós costumamos chamar no Chile de “a transição”. Ou seja, esse regime que começou nos anos 1990, depois da ditadura. Se isso for assim, estaremos falando não só do fim da Constituição de 1980 [imposta por Pinochet] e, portanto, do fim do desenho político-institucional que a ditadura nos deixou, mas também vai significar o início de um processo de construção de novas relações sociais. Temos que entender que as constituições não são somente normas que regulam o exercício do poder político do Estado, mas também as normas que incidem sobre a sociedade, especialmente através dos direitos fundamentais. Nesse sentido, creio que uma nova Constituição terminaria com essa enorme influência do pensamento neoliberal no Chile, especialmente através da desmercantilização dos direitos sociais. Ou seja, a possibilidade de garantir esses direitos fundamentais à margem da lógica do mercado. Algo temos visto nesse sentido no comportamento das pessoas desde aquela explosão social de outubro. Me refiro a práticas sociais diferentes, uma maior colaboração, maior solidariedade, embora também uma maior repressão por parte do Estado. A sociedade que vai surgir desse processo terá que lidar com esse mal-estar que se expressou nas ruas nestes últimos meses.