Um ex-guerrilheiro que foi comandado por Carlos Marighella, que ingressou na luta armada aos 17 anos, fez treinamento para a guerrilha dentro do Exército brasileiro, combateu a ditadura militar, foi o último comandante da Ação Libertadora Nacional (ANL) e, com pouco mais de 20 anos, se tornou um dos militantes mais procurados e perseguidos do país.
Essa é a história do alagoano Carlos Eugênio Paz (1950-2019), que ganhou espaço no cinema brasileiro. A vida e as lutas do guerrilheiro são contadas no documentário Codinome Clemente, dirigido pela cineasta Isa Albuquerque.
Com registros visuais e depoimentos inéditos, Codinome Clemente, batizado em referência ao “nome de guerra” de Eugênio Paz, leva o espectador às ruas de São Paulo onde foram realizadas ações da guerrilha urbana, ao Colégio Pedro II no Rio de Janeiro onde o militante estudou e deu seus primeiros passos na vida política, e também a Paris, uma das cidades que o acolheu no exílio até 1981.
Em entrevista a Opera Mundi, a diretora explica que, “ao conceber esse filme, ele traria ao público um resgate de memória da história recente do país” e mostraria “como havia sido o movimento de resistência à ditadura, o que pensavam aqueles garotos quando entraram em combate na clandestinidade, como eram as ações”.
“Esse tipo de abordagem não foi exatamente feita em projetos sobre essa época, porque [até então] havia uma espécie de resistência em tratar desse tema, até pela própria esquerda”, explica.
Por esse motivo, ela aponta que o protagonista trouxe ao documentário uma narrativa única. “Carlos Eugênio Paz sempre teve muita disposição em tratar dessas ações. Por sua singularidade, pela representatividade de sua época, de sua juventude, suas lutas, isso faz dele um personagem impar”.
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Bolsonaro, ditadura e luta armada
Quando, em 2018, o Brasil elegeu Jair Bolsonaro, um militar reformado, para o cargo de presidente, o acirramento da conjuntura política fez com que os objetivos de produção do filme tomassem um novo significado e proporção, de acordo com a autora.
“Com a militarização crescente do governo brasileiro, que está se dando de forma híbrida, não muito sutil, mas menos impactante que os tanques nas ruas dos anos 1960, acho importante que o filme traga esse resgate de memória para mostrar ao público o que foi um regime que controla o que você pensa e que utiliza a Lei de Segurança Nacional para intimidar”, comenta. Para ela, “é uma situação tão absurda que eu jamais pensei que pudesse ver o que está acontecendo”.
Acessar informações corretas, comenta a diretora, é imprescindível para que as pessoas tenham mais consciência do que elas tão pedindo de volta, nos protestos que reivindicam intervenção militar no país. Segundo Albuquerque, a sensibilização é o grande papel de um filme, que pode “trazer compreensão de um determinado contexto social”.
Na avaliação de Maria Claudia Badan, historiadora, autora do livro Mulheres na Luta Armada (Alameda, 2018) e ex-companheira de Carlos Eugênio Paz, o filme conseguiu captar os momentos históricos com delicadeza e “mostrar uma trajetória dura com ternura”.
“Codinome Clemente fala de um homem que elegeu um caminho até as últimas consequências e isso é sempre total, trágico, humaníssimo, para além de todos os acertos e erros”, comenta.
Divulgação
A história do alagoano Carlos Eugênio Paz (1950-2019) ganhou espaço no cinema brasileiro
Para a historiadora, não é possível dissociar um personagem de seu contexto já que “a guerra era o elemento simbólico naqueles anos e a violência revolucionária era o instrumento da mudança, apregoada pelos revolucionários e traduzida como uma ‘violência justa’, ou como um ‘ato libertador'”.
“O mundo estava em luta, era o movimento anticolonial e terceiromundista unido pela libertação dos povos. (…) Eram os ventos da Sierra Maestra, a Guerra da Argélia, a luta no Vietnã e aqui as nossas ditaduras sangrentas que impulsionavam ao combate pela autodeterminação dos povos e contra o imperialismo norte-americano”, aponta.
De acordo com Badan, “precisamos entender quais são as forças que legitimaram umas lutas e não outras”. “Precisamos nos perguntar o que foi feito com aquelas ideias que marcaram a história da cultura política brasileira e que quebraram tantas barreiras no passado. Eu acho que ainda não enfrentamos essa questão com honestidade”, diz.
Sobre a permanência de traços autoritários deixados pela ditadura militar brasileira no Estado atual, a historiadora aponta para “a manutenção da Lei de Segurança Nacional, o negacionismo das violências que foram cometidas pelos comandantes da época, a intervenção moralizadora do governo, o ódio à sexualidade, a sacralização e espiritualização do corpo feminino, a destruição do meio ambiente e o desprezo pela vida humana”.
Lançamento de Codinome Clemente
Apesar de ter sido finalizado em 2019, o longa Codinome Clemente ainda não foi lançado pois, segundo a diretora Isa Albuquerque, ele está embargado junto de outros 800 filmes na Agência Nacional de Cinema (Ancine). Depois de anos de trabalho, iniciado o projeto da produção em 2009 e as gravações em 2012, ainda não é possível exibi-lo.
Albuquerque reforça que “é preciso defender os mecanismos de propagação cultural que estão sendo desmontados” e diz que “um filme só existe no encontro com seu público, e é esse encontro que estamos buscando agora”.
“Toda área de conhecimento e pensamento, todas as áreas da ciência, todas estão sob o mesmo tipo de ataque”, lembra a cineasta. “São tempos bastante obscuros, é uma pena que isso esteja acontecendo”, desabafa.
Apesar do cenário de boicote interno da própria agência que fomenta o setor, com o atual diretor interino, Alex Braga Muniz, sendo acusado de aparelhamento político e de exoneração de servidores de carreira com anos de casa, Isa diz ter esperança de que, de alguma maneira, o setor volte a se estruturar.
Para o filme de Clemente, foi necessário buscar outros meios de financiamento: “a gente não teve outra saída e não consegue lançar o filme sem as colaborações de solidariedade”, pontua Maria Claudia Badan. É possível apoiar o lançamento do documentário através da campanha de financiamento coletivo, que está disponível até 31 de dezembro de 2021.
Assista na íntegra: