As eleições presidenciais no Chile ganharam um novo elemento de tensão após as revelações dos Pandora Papers sobre as atividades do presidente Sebastián Piñera em paraísos fiscais, que podem terminar em um processo de impeachment contra o mandatário.
Segundo os documentos, Piñera e seus filhos venderam ações da empresa mineradora Dominga no ano de 2010 ao empresário chileno Carlos Alberto Délano, pelo valor de 138 milhões de dólares, em operação realizada através de contas offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, pouco antes do presidente assumir o seu primeiro mandato (2010-2013).
As revelações geraram um terremoto político no Chile e transformaram Piñera em alvo de um processo iniciado no Congresso de acusação constitucional, que é similar ao impeachment no Brasil. A oposição já reuniu as assinaturas necessárias e está exigindo urgência no trâmite, para que o julgamento na Câmara dos Deputados – onde o governo não tem maioria – aconteça já em meados de novembro, coincidindo com a reta final de campanha das eleições presidenciais, cujo primeiro turno está marcado para o dia 21 de novembro.
O ponto central das acusações contra Piñera não é a evasão fiscal, mas a possibilidade do presidente ter cometido crime político ao não decretar a região de La Higuera, onde a empresa iria operar, como zona de proteção ambiental, mirando favorecimentos financeiros ligados à negociação, já que, segundo uma cláusula do contrato revelado pelos Pandora Papers, o último pagamento só seria concretizado se o governo chileno – já encabeçado pelo próprio Piñera – não decretasse a proteção ambiental no local em questão.
Isso efetivamente aconteceu e não só em 2010: até hoje, a proteção da biodiversidade de La Higuera não foi regulamentada, apesar de vários informes científicos alertando para os riscos que a mineração na região podem causar, já que seria a primeira mina do Chile próxima a uma zona costeira e em uma baía onde está o Arquipélago de Humbolt, de fauna e flora únicas, incluindo uma espécie de pinguim (o Pinguim de Humbolt) em risco de extinção.
O governo seguinte – o do segundo mandato de Michelle Bachelet – publicou um decreto que criaria uma Área Marinha Protegida nas proximidades de La Higuera, em março de 2018. Piñera iniciou seu atual mandato dias depois, com a obrigação de executá-la, mas não o fez e ainda impulsionou outras medidas para frear essa regulação.
Em agosto deste ano, a Comissão de Avaliação Ambiental da província de Coquimbo – constituída por 11 delegados nomeados por Piñera – rechaçou um Estudo de Impacto Ambiental que impedia a mineradora Dominga de iniciar suas atividades em La Higuera e com isso a empresa já podia tirar o projeto do papel. Contudo, a própria convocação da reunião passou por cima de uma liminar da Corte Suprema que exigia que fossem atendidas recomendações do mesmo estudo.
O texto da atual acusação constitucional contra o presidente afirma que todas essas ações provariam que Piñera atuou politicamente durante o atual mandato para travar a regulação ambiental e evitar que ela fosse um obstáculo para o empreendimento pelo qual sua família recebeu o pagamento em 2010, segundo o contrato revelado pelos Pandora Papers.
Wikicommons
Presidente do Chile será investigado por operações em paraíso fiscal
Reações e estratégias
O presidente Sebastián Piñera fez sua primeira declaração sobre o caso na última sexta-feira (08/10), mas se referiu apenas à acusação de sonegação de impostos. “Tenho a plena confiança de que, assim como em todas as ocasiões anteriores, a justiça ratificará o que já foi decretado por ela mesma e confirmará a minha total inocência”, alegou o presidente, se referindo ao fato de que essa venda já havia sido caso de Justiça em 2015, quando foi declarada a insuficiência de provas e arquivamento da denúncia.
Contudo, o documento revelado pelos Pandora Papers indicam a existência dos dois contratos: o primeiro, que já era conhecido da Justiça em 2015, previa um pagamento de 14 milhões de dólares referentes ao contrato no Chile; já o segundo, até então inédito, estipulava um pagamento de mais 138 milhões de dólares que Piñera receberia do empresário Carlos Alberto Délano em offshore nas Ilhas Virgens Britânicas.
Piñera não fez nenhum comentário sobre as decisões políticas que seu governo tomou contra as regulações ambientais que prejudicariam o empreendimento da mineradora Dominga na região de La Higuera, principal tema da acusação constitucional.
Para a deputada Claudia Mix, do partido de esquerda Convergência Social e uma das autoras da acusação, a obrigação da oposição “é exercer nosso papel fiscalizador independente do contexto. Atuamos de forma urgente, como seria se isso tivesse acontecido há seis meses, ou em anos anteriores”.
Esta é a segunda acusação constitucional contra Piñera durante seu segundo mandato. Em novembro de 2019, ele havia sido denunciado por reponsabilidade nas violações de direitos humanos cometidas durante a revolta social de outubro daquele ano, mas foi absolvido, em dezembro, por 79 votos a 73.
Caso o atual processo avance e Piñera seja derrotado na Câmara, ele será imediatamente afastado do cargo de presidente e deverá enfrentar novo julgamento no Senado, onde o governo tem maioria. Se o Senado também condenar o mandatário, ele será destituído definitivamente. Nesse caso, como o Chile não possui a figura do vice-presidente, a chefe do Senado, Ximena Rincón, assumiria a Presidência com a obrigação de convocar novas eleições de forma urgente. Isso poderia acontecer em data próxima a do segundo turno das eleições presidenciais, marcado para o dia 19 de dezembro. Por isso, existe a possibilidade de que o próximo presidente eleito tenha que antecipar sua posse e assumir quase imediatamente após o pleito.
Além da acusação constitucional, Piñera também se tornou alvo da Justiça, onde poder sofrer desde uma multa milionária até pena de prisão. Na última sexta-feira, a Procuradoria Nacional iniciou as investigações contra o presidente por possíveis crimes cometidos na venda de suas ações da mineradora Dominga. O comprador das ações, o empresário Carlos Alberto Délano, também será investigado.