José Mujica é um homem simples, que ama a natureza e vive num pequeno imóvel nos arredores de Montevidéu: quarto, sala, cozinha e banheiro, numa zona semi-rural da capital uruguaia. Dirige trator, corta alfafa, ara a terra e lava a própria louça. Tudo porque prefere não pagar empregados para fazer os serviços domésticos. Todos os dias, pela manhã, sai para caminhar com Lucía Topolansky, sua companheira desde os tempos de militância contra a ditadura militar (1973-1984).
Em paralelo a este cotidiano bucólico, corre uma ascendente carreira política, que ameaça deixar seu dia-a-dia um pouco mais agitado. Pepe, como é conhecido o ex-guerrilheiro de 73 anos que liderou o Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros, está fortemente credenciado para concorrer a uma patente mais alta em outubro: a presidência uruguaia. No mês passado, ele obteve 71% dos votos dos delegados no congresso da Frente Ampla (leia mais), derrotando Danilo Astori, o preferido do atual presidente, Tabaré Vázquez, que teve 23,8%.
Tabaré sonhava com uma fórmula amistosa, encabeçada pelo ex-ministro da Economia, Astori, com Mujica como vice. Mas este não quis abdicar da candidatura, alegando que a decisão deveria ser tomada pelo partido. Em entrevista ao Opera Mundi, definiu a disputa com o concorrente com a seguinte frase: “Não andamos aos beijinhos”. Num tom quase de brincandeira, reconheceu que em várias circunstâncias se vê em desvantagem, por não usar terno nem falar inglês.
Para muitos militantes da Frente Ampla, a figura de Mujica não se restringe a uma alternativa à liderança de Tabaré Vázquez no partido. Representa, isso sim, a garantia de um governo que aprofunde as mudanças iniciadas. Ao contrário de Astori, que prega continuidade.
NULL
NULL
Sobre a relação com o presidente, Mujica nega que haja distanciamento, mas não deixa de cutucar: “Quando a pessoa tem muito poder, ela também é usada. Tabaré vive cercado de muitas pessoas, mas às vezes tenho a sensação de que anda muito sozinho”.
Contudo, o ex-guerrilheiro evita criticar o governo que integrou, como ministro da Pecuária, Agricultura e Pesca. Ele prefere elogiar a política econômica de Astori e assegura que, caso seja eleito, manterá a disciplina fiscal e monetária. Desafiando convenções históricas, considera que a influência do Estado deveria ser menor e mais eficiente.
Existem três temas que o preocupam em particular: trabalho, ensino e produção. Uma de suas plataformas visa estimular os camponeses latino-americanos, para que se estabeleçam no Uruguai e trabalhem a terra, hoje dividida e organizada por latifundiários, e com baixos níveis de produtividade.
Mujica ressalta que é preciso desenvolver a propriedade social e fomentar a autogestão dos trabalhadores, para que “as pessoas aprendam a manejar-se com responsabilidade, o que, no fundo, é o verdadeiro poder”. Somente assim, a paz social será conquistada, filosofa.
Sua equipe de governo, caso chegue à presidencia, será formada por integrantes de todos os partidos políticos e setores da Frente Ampla. “É necesario haver uma grande abertura e construir margens de acordo nacional”, afirma.
Após a vitória arrasadora no congresso do partido, ele declarou que o resultado não lhe subiria à cabeça e que foi importante principalmente para aqueles que, como ele, “seguem apoiando a idéia das forças políticas baseadas na militância”. Militância que, no caso de Mujica, teve início na década de 50, quando o Uruguai começava a apresentar sinais de uma crise que se agravaria nos anos 1960.
A primeira vez atrás das grades
Em 1964, foi preso pela primeira vez – como infrator comum, por um assalto mal-sucedido que, na verdade, tinha fins políticos: fazia um ano que o MLN, organização armada que originou uma das guerrilhas urbanas mais importantes do continente, atuava nas ruas.
Em 1969, entrou para a clandestinidade e logo foi detido novamente. Tentou fugir duas vezes da cadeia, sofreu tortura e sentiu a morte de perto. Em outra circunstância, usou a morte como falso pretexto para combater a ditadura, ao forjar um cortejo fúnebre para praticar ações de guerrilla.
“A prisão gerou um aprofundamento da minha personalidade e uma revisão muito grande das idéias. Nos últimos três anos de cárcere, me deixaram ler; li muita ciência”, recorda. Ficou atrás das grades por 13 anos. Lucía Topolansky também passou por maus bocados. Quando presa, teve em determinada ocasião a cela inundada com água, e assim não podia deitar.
Em 1995, 11 anos depois de recuperada a democracia, Mujica foi eleito deputado pela Frente Ampla. Dez anos depois, foi o senador mais votado nas eleições que, pela primeira vez, levaram ao poder uma coligação de esquerda, a Frente Ampla. Naquele ano, virou ministro, cargo que deixou no começo de 2008.
Mujica é um entusiasta do Mercosul e acredita que o bloco deveria ser ampliado, a começar pela entrada da Venezuela. Fato que, segundo ele, traria mais equilíbrio, neutralizando a assimetria entre os grandes (Brasil e Argentina) e os pequenos (Uruguai e Paraguai). Pepe considera um erro criar novos organismos como a Unasul (União de Nações Sul-Americanas). “Parece que quando uma coisa está emperrada, inventamos outra, ao invés de melhorar a que temos”, pontua.
No Mercosul, cada um faz “o que bem entende”
Ainda que apóie os intercâmbios em moeda local e a criação de um Banco Central do Mercosul, ele alerta para a necessidade de serem superadas as visões antiquadas do bloco. Também acha necessário criar instituições que dêem garantias aos países nas relações comerciais, porque, de acordo com ele, atualmente, “os mecanismos de arbitragem estão no escuro e qualquer sócio faz o que bem entende”.
Sobre os líderes sul-americanos, Mujica avalia que só é possível definir se são mais ou menos de esquerda “no final do caminho”. “Se as pessoas não melhoram de vida, a conclusão é de que a esquerda não foi radical, por mais que se esperneie. O que fez [o presidente brasileiro] Lula é de uma radicalidade enorme, ainda que não percebam ou não queiram admitir. A quantidade de gente que ele tirou da miséria é imensa. O que não significa, ao mesmo tempo, que esteja construindo uma sociedade socialista”.
Quanto a Hugo Chávez, Mujica não considera o presidente venezuelano um personagem autoritário. Para ele, essa é uma imagem falsa, alimentada por seu temperamento e sua forma de falar. Diz ter uma “enorme confiança” em Chávez, mas também um “enorme temor” de que todos os fenômenos de mudança sejam associados a ele. “Esse é um ponto de enorme debilidade. É perigoso”.
Em outubro de 2009, saberemos se o Uruguai terá, pela primeira vez, um ex-guerrilheiro no comando. Seus pontos fracos e fortes nessa disputa, ele mesmo enumera. Por um lado, a idade avançada, os 13 anos de cadeia nas costas e o aspecto físico desalinhado. Por outro, a enorme popularidade e a simpatia, presentes entre setores importantes da esquerda uruguaia e igualmente entre os países da região.