Quem se importou com o Haiti, onde um terremoto matou cerca de 200 mil pessoas, deixou outras tantas desabrigadas e causou um tremendo estrago na capital Porto Príncipe e outras cidades, pôde começar seus esforços de “ajuda humanitária” comendo um Big Mac na rede de lanchonetes norte-americana McDonald’s. Ou assistindo a uma partida da equipe feminina de vôlei patrocinada pela Unilever, multinacional de bens de consumo. Outros preferiram ligar o computador usando o software Windows, da Microsoft, e usando cartões de crédito Visa ou Mastercard para doar. Uns raros contribuíram embarcando em um cruzeiro marítimo da RoyalCaribbean. Todas essas empresas, no fim das contas, dão ajuda humanitária ali.
Mas até que ponto é ético associar uma empresa a uma catástrofe como a que destruiu o país caribenho? Ou à fome na África? Ou aos flagelados pelas chuvas em Angra dos Reis e em São Luiz do Paraitinga? Para especialistas da área de publicidade e propaganda, esse tipo de marketing é defensável no caso das empresas que mantêm um histórico de colaboração com causas humanitárias. Ao contrário, o resultado pode ser o oposto ao esperado: satanização da marca como aproveitadora e insensível.
“O mercado já conhece as empresas que têm em seu DNA uma proposta orientada para o benefício da sociedade, do meio ambiente e, como não poderia deixar de ser, de seus acionistas”, disse Ismael Rocha, especialista em sustentabilidade e coordenador do núcleo social da ESPM (Escola Paulista de Propaganda e Marketing), ao Opera Mundi.
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“Há também as empresas que estão começando nesse caminho e aprendem em tragédias como essa e, por fim, as que ainda não perceberam a importância de um posicionamento socioambiental coerente e lançam ações imediatistas, correndo sério risco se perderem”.
Apesar de ser um dos alvos preferidos dos grupos anti-globalização, a rede de lanchonetes McDonald’s, diz Rocha, é vista como uma das empresas do primeiro grupo. Por cinco dias, a rede organizou uma campanha mundial para reverter parte da renda obtida com seu sanduíche-chefe para as vítimas do terremoto. Diretores da companhia afirmaram que mais ações podem vir nos próximos meses – talvez anos – até a reconstrução do Haiti. O McDonald's ainda não informou a renda obtida, mas a expectativa é a de que o valor chegue a pelo menos um milhão de dólares.
Rocha cita o McDia Feliz, destinado a financiar os tratamentos de crianças com câncer, como demonstração de envolvimento nada pontual da corporação com causas humanitárias. (O que não impede ONGs brasileiras de criticarem o uso do nome do palhaço-propaganda Ronald McDonald em obras que beneficiam centenas de jovens doentes no país.) Entre as companhias que anunciaram esforços para o Haiti, a rede de lanchonetes foi a única que o professor citou como exemplo de envolvimento. Críticas às outras, evitou fazer.
Sem foco
A bíblia dos marqueteiros de todo o mundo foi escrita pelo professor norte-americano Philip Kotler e se chama Princípios de Marketing. Atualizada há cerca de cinco anos para incorporar o uso de novas tecnologias, a obra ajustou a mira para tratar da necessidade de ação rápida para atrair consumidores impactados pela informação e a comoção em tempo real.
O risco nesse processo, diz ele, é o de promover valores que nem os próprios funcionários consideram verdadeiros para aquela marca. Ou de serem um instrumento importante nesse processo e, por falta de atenção, só agirem sob pressão.
Na prática
É aí que entra o Haiti. No caso da promoção de valores não congruentes um dos destaques ficou por conta da empresa de cruzeiros RoyalCaribbean, que manteve na programação um roteiro paradisíaco com escala em Labadee, ilha ao norte do Haiti. A companhia tentou explicar que levava também mantimentos para os prejudicados do país. “É algo muito difícil de explicar para a sociedade. E nem é um roteiro dos mais importantes, poderíamos simplesmente não ir e mandar os mantimentos”, disse um funcionário que pediu para não ser identificado.
Na segunda vertente, a das empresas que só agem sob pressão e pioram sua imagem, estão as operadoras de cartões de crédito. Grandes marcas como Visa, MasterCard e AmericanExpress foram pressionadas publicamente. De um lado eram instrumento de donativos para os flagelados. Do outro, cobravam comissões de até 7% nas operações do tipo. Acabaram baixando o número para 3%. Não resolveu.
Finalmente as operadoras acabaram abrindo mão de uma porcentagem do dinheiro enviado ao Haiti. Não foi fácil perder um naco do dinheiro das transações globais com donativos solidários: estimativas apontam que as principais empresas do ramo lucraram mais de 250 milhões de dólares no ano passado apenas com esse nicho. Para evitar maiores danos às marcas, tomou-se a mesma medida observada em 2004, depois do tsunami que matou mais de 280 mil pessoas em vários países banhados pelo Oceano Índico.
A discussão filosófica e mercadológica sobre se é ético o marketing da tragédia fica ainda mais evidente quando aparecem exemplos desse uso em empresas menores, espelhadas nas grandes marcas, como é o caso de um restaurante em São Paulo.
“O restaurante Chakras destinará a renda integral obtida com as vendas do risotto de espinafre com pinoli, mandioquinha e crocante de bacon para as vítimas do terremoto que assolou o Haiti na última terça-feira, dia 12. O prato custa 46 reais e é um dos mais apreciados no restaurante. Para Miguel e Fabiana Reis, proprietários do Chakras, ações solidárias estão no coração da estratégia de negócios do restaurante, que também funciona como espaço cultural. “Se cada um doar um pouco que seja, poderemos fazer diferença e ajudar de fato as vítimas dessa imensa tragédia”, diz Miguel Reis.
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