Na última quinta-feira (15/12), a Câmara de Deputados da Argentina aprovou um projeto de lei que declara a fabricação, distribuição e venda de papel-jornal no país como “interesse público”. Desde os primeiros anos da ditadura militar do país (1976-1983), a Papel Prensa SA, única fábrica de produção do insumo e que fornece papel-jornal para cerca de 170 veículos impressos do país, passou às mãos do Estado (27,5% das ações) e dos grupos de imprensa Clarín e La Nación (49% e 22,49% das ações, respectivamente), donos dos principais jornais em circulação e em volume de negócios na Argentina.
Em entrevista ao Opera Mundi, o especialista em políticas, planejamento e concentração de meios de comunicação, Martín Becerra, define a conjuntura societária atual como “anômala”, discorre sobre as queixas de jornais concorrentes para o acesso ao papel-jornal e aponta suas críticas ao projeto de lei, que deve ser votado nesta semana pelo Senado do país.
Arquivo pessoal
Becerra: “Estado foi cúmplice e sócio de todas as articulações que agora ele mesmo denuncia”
Um dos pontos mais levantados pela oposição durante a discussão na Câmara de Deputados é que a lei do papel-jornal é inconstitucional e expropriatória.
O artigo 32 da Constituição argentina determina textualmente que o Congresso não pode emitir leis que restrinjam a imprensa. É uma disposição comum aos países da América, que considera a imprensa livre como um dos pilares de uma sociedade democrática. Mas eu não acho que estejam restringindo a imprensa. O que estão fazendo é declarar o interesse público em relação ao mercado de produção e provisão de papel. Inclusive, em termos de argumentação, poderia se pensar justamente ao contrário. Não só não é inconstitucional, como vigora e robustece o mandato constitucional para que este mercado opere sob condições razoáveis, o que não acontece atualmente.
As alegações feitas pelos defensores do projeto de lei, de que a empresa não fornecia papel aos jornais concorrentes, são verídicas?
Historicamente vários competidores se queixaram, criticaram o fato de que, segundo eles, se viram discriminados na hora de participar do mercado de compra de papel. Isso por dois motivos: preço, que não era o mesmo pago pelo qual Clarín e La Nación compravam a tonelada, ou porque nem sempre eram abastecidos de acordo com as necessidades que tinham. Enquanto La Nación e Clarín, como sócios da empresa, sempre tiveram o abastecimento que requeriam para funcionar.
E houve mesmo, como alega o governo, fechamento de jornais devido a isso?
Eu não poderia garantir que é só graças a isso, porque há uma grande quantidade de custos que incidem na viabilidade de uma empresa jornalística. Certamente o papel é um produto crítico, então é possível que alguns tenham tido sua principal dificuldade nisso.
Um dos pontos de discussão é que a Papel Prensa não teve lucro nos últimos anos porque subsidiava o papel dos dois jornais. Eles não pagavam por este produto?
Não é que não pagavam, mas somente era cobrado praticamente o preço de custo do papel para as empresas jornalísticas sócias.
Neste caso, o Estado perdia…
Claro, porque é acionista. Não sei da existência, em nenhum lugar do mundo, desta situação, onde o Estado é sócio das duas principais empresas jornalísticas na única fornecedora de papel-jornal do país. É uma situação única. Muito mais anômalo é que esta sociedade tenha acontecidona ditadura militar. É um assunto doloroso, recente, vinculado a torturas e sequestros extorsivos, em um capítulo que não deixa o Clarín e o La Nación bem posicionados. São as duas empresas jornalísticas líderes no mercado argentino, que esgrimem o discurso da independência ao poder e aos governos, mas que certamente em outro país teriam dificuldades de sustentar este argumento.
O que já foi comprovado destas denúncias de extorsão à família Graiver, dona da empresa?
O caso é uma batata quente que diferentes juízes passam de um para o outro. Ainda não há provas legitimadas pela Justiça. O que sabemos foi falado por Lidia Papaleo, viúva do [David] Graiver, antigo dono da empresa, de que houve sequestro e de que teve que vendê-la mal devido a extorsão e ameaças por parte da ditadura, com a cumplicidade de Clarín e La Nación. Estes negam, afirmam que simplesmente foram convocados à possibilidade de fazer um negócio e pagaram o preço pedido. São duas versões completamente opostas e até agora a Justiça não se expediu.
Se a empresa não dá lucro, qual é o interesse do Estado em fazer parte desta sociedade?
Essa é uma pergunta excelente, porque envolve um assunto que para mim é central. Seria bom perguntar a todos os diretores estatais que, em nome do Estado argentino, se sentaram na diretoria da Papel Prensa e aprovaram todos os balanços da empresa durante muitos anos. Teríamos que perguntar por que o fizeram, com que objetivo e sob que condução política. Mas esta situação não está sendo discutida, porque é absorvida pela briga entre o governo e o Clarín. Mas o Estado argentino também tem que revisar internamente o que fez durante décadas ao participar desta sociedade.
Qual seria a resposta?
Basicamente que esta vinculação societária permitiu que os governos anteriores tivessem uma interlocução, uma relação muito próxima com as empresas jornalísticas, que definem a agenda política e pública deste país. É uma situação muito incômoda tanto para estas duas empresas, como para o Estado, que foi cúmplice e sócio de todas as articulações que agora ele mesmo denuncia. Neste sentido não há nenhuma diferença entre os governos de Raúl Alfonsín, Carlos Menem, Fernando de la Rúa ou Néstor Kirchner, que designaram diretores estatais para a empresa e não prestaram contas públicas do que faziam. A mudança veio somente em 2008, com Cristina Kirchner.
Tanto o Clarín como o La Nación dizem que o governo quer controlar o papel-jornal. O senhor concorda esta afirmação?
Eu acho que nisso eles têm razão; essa é uma crítica medular que tenho ao projeto. O texto que está em consideração no Senado propõe uma fórmula por meio da qual serão definidas as cotas de importação que o ministério de Economia autorizará às empresas jornalísticas. É um mecanismo complicado de entender e tenho certeza que também de executar. O projeto seria muito mais defendível se garantisse a livre importação de papel.
Por quê?
Porque senão é contraditório com os objetivos de defesa do acesso ao insumo. A cada três meses todos os operadores do mercado terão que fazer um balanço da quantidade de toneladas que utilizam e, em função deste número, o ministério verificará se a Papel Prensa está ou não em condições de abastecer esta demanda potencial. Só no caso de não estar, autorizaria a importação.
Mas, segundo esta lei, Clarín e La Nación se mantêm como sócios majoritários. Por que falam em uma ameaça de maior controle do governo?
Neste caso a crítica à restrição da importação de papel é central. Hoje muitos jornais importam papel, porque os custos são quase iguais aos do papel nacional, já que não há taxas alfandegárias à importação deste produto. Mas se o ministério define quotas, se presta a que as empresas que editam jornais suspeitem que se tiverem algum tipo de conflito com o governo de turno, seja este ou futuros, possam ter complicações em relação ao acesso à importação de papel e, gerando possibilidades de restrições ao seu funcionamento.
Mas existe a possibilidade de mais controle governamental, além deste aspecto da importação?
Em princípio os jornais são sócios majoritários, mas o projeto diz que se o Estado faz investimentos ao capital acionário da Papel Prensa que não sejam compensados por aportes proporcionais dos sócios privados, o Estado terá mais quantidade de votos no momento de definir a estratégia da empresa.
E se o governo tem condições de fazer estes investimentos, aumenta o seu poder sobre a empresa?
Se você pensa assim, aumenta o poder do Estado, mas não posso evitar pensar em outras situações. O mercado de fornecimento de papel-jornal na Argentina funcionava de uma maneira completamente anômala, não é que funcionava bem. Os próprios Clarín e La Nación, que são as forças de mercado mais poderosas neste caso, poderiam ter proposto nos 30 e longos anos, como sócios do estado, algum tipo de modificação no status quo que permitisse que as empresas jornalísticas menores co-participassem da propriedade desta empresa, mas nada disso aconteceu. O Grupo Clarín, em particular, é uma empresa dominante em todos os meios de comunicação e tem participação nesta produção monopólica, já que a Papel Prensa é a única fabricante nacional deste insumo chave para o funcionamento dos concorrentes.
Este estilo de governo pode incidir na administração da Papel Prensa no futuro?
Temo que sim, porque o governo avança sozinho, mas na verdade é uma solidão majoritária, tem uma maioria muito contundente. Mas essa crítica serve tanto para o kirchnerismo como para a oposição, que também não se preocupou em entrar num consenso com o governo em relação a essa lei. É um estilo de como se faz política na Argentina.
No geral, qual é a sua avaliação do projeto de lei?
Essa situação anômala, de sociedade entre o Clarín, La Nación e o Estado, tem que ser modificada. Agora há uma proposta de mudança, o que não significa que se tenha que aprová-la em nível fechado. Tenho críticas, mas ninguém neste país que teve responsabilidade de governo tomou essa iniciativa. Isso ajuda a compreender porque o kirchnerismo tem o apoio e a legitimidade que tem, não de minha parte, porque não sou governista, mas dos habitantes do país. É verdade que às vezes o governo toma decisões arbitrárias, feitas rapidamente, sem consenso com a oposição. Mas também é verdade que avançam em questões que merecem profundas transformações.
NULL
NULL
NULL