Ao contrário do que se pensa, a chegada de haitianos não é um fenômeno tão recente assim. O fluxo migratório da população começou com mais firmeza em 2010, com o terremoto que assolou a ilha e resultou na morte de mais de 300 mil pessoas, mas não foi de forma massiva. Tal processo intensificou-se no fim de 2011 e início de 2012. Neste período, dados do Ministério da Justiça estimam que pelo menos 4.000 imigrantes entraram sem todos os documentos regularizados no país.
Existem diversas rotas do Haiti para o Brasil, mas as principais delas passam pelo Equador, Peru ou Panamá. A viagem realizada por “coiotes” custa de US$ 2.000 a US$ 2.500 (aproximadamente R$ 4.550 a R$ 5.700). No entanto, haitianos consultados por Opera Mundi alegam que há muitos casos de corrupção na fronteira, obrigando os imigrantes a pagarem de US$ 50 (R$ 114) a US$ 200 (R$ 455) a mais para policiais. Todos os preços são negociados em dólar.
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Além das catástrofes naturais, há outros motivos que explicam a vinda de haitianos ao Brasil. Uma delas é a marcante presença brasileira na Minustah (Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti), apesar de as tropas da ONU dividirem opinião dos habitantes da ilha e gerarem insatisfações após 10 anos de atividade.
Segundo Deisy Ventura, professora Livre-Docente do Instituto de Relações Internacionais da USP (Universidade de São Paulo), a presença de militares brasileiros no Haiti tem grande responsabilidade nesse fluxo migratório. “A Minustah foi sem dúvida uma vitrine dos haitianos pelo fator de propaganda solidária”, aponta.
Mariane Roccelo/Opera Mundi
Haitianos conversam em frente ao complexo da paróquia Nossa Senhora da Paz, ligada à ONG Missão Paz
Embora a Minustah tenha colaborado para tornar o Brasil uma espécie de referência aos cidadãos haitianos, para Ventura, o grande fenômeno da mobilidade é de fato o trabalho. Em praticamente todos os depoimentos coletados por Opera Mundi, haitianos e haitianas justificam suas vindas pela busca de emprego. E não é à toa. Segundo os últimos dados do governo da ilha, a taxa de desemprego atinge 27% da população e o setor informal absorve pelo menos 65% da mão-de-obra no Haiti.
Trabalho e fiscalização para todos
Há haitianos que têm qualificação manual e possuem curso técnico, mas há também aqueles que têm curso superior e falam até três idiomas, como é o caso de Kenny. Com psicologia e direito no currículo e crioulo, francês e espanhol na ponta da língua, Kenny não é um caso isolado. Apesar da qualificação profissional, muitos haitianos optam a princípio por empregos no setor de serviços, mas vão subindo rapidamente na carreira, segundo a assistente social Ana Paula Caffeu, coordenadora do Eixo Trabalho do Centro Pastoral de Mediação dos Migrantes.
Nos últimos dois meses, mais de 800 estrangeiros, sobretudo haitianos, foram contratados a partir da mediação da Missão Paz, ONG ligada à Pastoral do Imigrante e à paróquia Nossa Senhora da Paz, para qual trabalha Ana Paula.
“As experiências negativas são mínimas, pois tentamos esclarecer todas as dúvidas na mediação que realizamos semanalmente com as empresas”, explica Ana Paula. Após as contratações, os principais destinos são os estados da região Sul e Sudeste do Brasil. Nessas regiões, os setores de serviços, construção civil, restaurantes e frigoríficos são alguns dos ramos das cerca de 40 empresas de pequeno, médio e grande porte que diariamente vão à Pastoral em busca de mão de obra estrangeira.
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Haitianos se reúnem com as empresas interessadas na mão de obra estrangeira, durante mediação do Eixo do Trabalho
Após contratar dois haitianos, Nicolas Palazzo, diretor da empresa Officina de Caçambas, diz que acredita que a experiência com os imigrantes será positiva. “A gente percebe que o brasileiro não tem a gana que essas pessoas têm”, afirma. Localizada Cabreúva, interior de São Paulo, a pequena empresa de fabricação e reforma de containers oferece salário em torno de R$ 1500 para os imigrantes, com horário de trabalho das 7h30 às 17h.
Contudo, a maioria das empresas acaba desistindo por não conseguir fornecer todas as condições mínimas para o trabalhador imigrante, como refeição e alojamento. “A cada três meses, visitamos as empresas para fiscalização. Além disso, os imigrantes têm nossos telefones para denunciar se seus direitos trabalhistas são desrespeitados. Ao mesmo tempo, os contatos das empresas foram repassados ao Ministério do Trabalho para reforçar a fiscalização”, relata o padre italiano Paolo Parise, diretor da Missão Paz.
Para Leonel Joseph, presidente da Associação de Haitianos da cidade de Navegantes, em Santa Catarina, tal fiscalização ainda deixa muito a desejar. “Ouço casos de trabalhos das 5h às 23h com salários de R$ 1000 sem garantias nem seguros. Se isso não é trabalho escravo, não sei o que é então”, afirma.
Por novas políticas de inclusão
Uma discussão levantada por padre Paolo Parisi aponta para a necessidade de o Estado garantir os mesmos direitos e interesses de trabalho às outras nacionalidades que batem à porta da Pastoral. Como apenas os haitianos recebem cotas para visto humanitário (que aceleram a burocracia de documentação), outros imigrantes esperam até três meses para adquirirem os papeis necessários para conseguir emprego. “Não existem só haitianos, mas pessoas vindas, inclusive, de situações de guerra, como os sírios ou congolenses refugiados. Foi muito bonito abrir as portas para os haitianos, mas falta incluir outras nacionalidades”, afirma Parisi.
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Ligados à Igreja evangélica haitiana, Ytelmi Rilet, Elerynor Clean e Elnel Hippolyte contam que estão buscando trabalho no país
Na mesma linha, o padre Antenor Dalla Vecchia, que também atua na Pastoral e é um dos dirigentes da Missão, ressalta que tais medidas de acolhimento não podem ficar apenas sob responsabilidade da sociedade civil. “Teve empresa que chegou aqui pedindo 500 haitianos. Apesar de ajudarmos com o Eixo do Trabalho, não é nosso papel dar emprego. O governo deve ter uma estrutura organizada, um local permanente destinado aos imigrantes”, diz.
“Estamos diante da necessidade de rediscutir toda política nacional de imigração. Não podemos ficar remediando cada situação emergencial”, admite Paulo Illes, coordenador-geral de Políticas para Migrantes da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo.
Segundo Illes, a Prefeitura entrou em acordo com o Ministério da Justiça para alugar um novo espaço para até 220 leitos de referência e acolhida de imigrantes permanente. Ainda em estudo, o edifício do projeto oferecerá assistência social, jurídica, psicológica, além de orientação de trabalho. “Precisamos dar uma resposta política permanente e estrutural”, conclui o coordenador-geral.
Por enquanto, o local ainda não foi determinado e a escolha dos haitianos ainda fica dividida entre permanecer na Pastoral ou no abrigo temporário da Prefeitura. Apesar da impressão positiva de Kenny, ainda há uma série de desafios que o Brasil precisa superar se quiser se tornar um país referência no acolhimento de imigrantes.
* Colaboraram Igor Truz e Mariane Roccelo
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