Recém-criadas para fomentar o processo de integração do Brasil com outros países, os alunos da Unila (Universidade Federal de Integração Latino-Americana) e Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) enfrentam situações ainda inusitadas para a maioria das instituições de ensino superior brasileiras. Desde a infraestrutura inacabada, passando pelas dificuldades de comunicação até os problemas de convivência internos e com as comunidades locais, os 853 alunos estrangeiros instalados nessas duas instituições ainda se encontram em um progressivo processo de adaptação.
A avaliação vem das próprias reitorias, que conversaram sobre o tema com Opera Mundi. Segundo elas, porém, há avanços significativos. “Imagine o impacto econômico e cultural para uma cidade no interior do Nordeste, com apenas 26 mil habitantes, onde não havia negros, a chegada de mais de 700 estudantes, sendo 220 estrangeiros (números atuais), africanos e asiáticos. E mais, dos brasileiros, 90% eram locais, cearenses. Só agora estão chegando representantes de outros Estados e regiões do Brasil. No início foi muito difícil”, relata o reitor da Unilab, Paulo Speller.
“No dia de inauguração, o que mais me marcou foi o discurso de um estudante argentino que dividia seu quarto com um paraguaio, um uruguaio e um brasileiro. Ele lembrou que há pouco mais de um século esse quatro países estavam em guerra, e agora todos se encontram aqui”, diz Andrea Ciacchi, pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação na Unila.
A Unila, em atividades desde agosto de 2010, está em Foz do Iguaçu, na Fronteira Trinacional (entre Brasil, Argentina e Paraguai), voltada a todo o continente latino-americano e o Caribe. A parte dos 608 brasileiros, a maioria entre os 633 estrangeiros é composta por paraguaios (217) e uruguaios (82). Em seguida, pela ordem, aparecem estudantes do Peru (65), Equador (63), Bolívia (57), Argentina (50), Colômbia (42), Venezuela (36), Chile (15) e El Salvador (6), único representante centro-americano. Os cursos mais procurados pelos estudantes estrangeiros foram Engenharia Civil e de Infraestrutura; Engenharia de Energias Renováveis; Ciências Econômicas; Relações Internacionais e Integração e Música.
Já a Unilab, criada em 2010 e em funcionamento no ano posterior, fica no pequeno município de Redenção (Ceará), primeira cidade brasileira a abolir a escravidão, e a 68 km de Fortaleza. Ela é voltada aos países da CPLP (Comunidades de Países da Língua Portuguesa), com especial destaque à África. Um segundo campus está sendo construído em São Francisco do Conde, na Bahia, 73 km ao norte de Salvador.
Arquivo pessoal/Faustino Manoel Rodrigues
Líder estudantil, Faustino (à dir.) visita a pequena Redençao, no Ceará, com os colegas da Unilab
Dos seus 220 estrangeiros, a maioria é do único país não-africano representado, o Timor Leste (71), seguido pela Guiné-Bissau (58), Cabo Verde (22), São Tomé e Príncipe (20), Angola (17) e Moçambique (3).
Speller afirma que a Unilab, em breve, terá status de universidade residencial, ou seja, fornecerá instalações para que todos os estudantes morem dentro da universidade. Por enquanto, a maioria por auxílios de moradia, transporte e alimentação, e tem ainda mais contato com a cidade – o que, até o momento, não registrou maiores problemas.
A impressão de Speller é confirmada pelo estudante de administração pública Faustino Manuel Rodrigues, originário da Guiné-Bissau, e integrante da turma inaugural, em meados de 2011. Adaptado à cidade e namorando uma colega cearense, ele conta que o povo de Redenção recebeu os estudantes de forma acolhedora. “Nunca houve episódio de assalto, agressão ou preconceito [entre moradores da cidade e estudantes]. Aqui, por ser pequeno, todo mundo sabe se acontecer alguma coisa”.
No intercâmbio cultural, o que mais despertou atenção dos estudantes africanos no Ceará foram as danças e festas juninas, além da capoeira. Já os brasileiros se impressionaram pela facilidade com que eles falam línguas estrangeiras, além de apreciarem muito as músicas africanas locais. Faustino aproveita para dar algumas aulas de inglês aos moradores. O ponto de encontro da cidade, segundo ele, é a paróquia da igreja central.
Os problemas maiores, segundo Faustino já resolvidos, ocorreram nos primeiros meses entre estudantes brasileiros e africanos. “No começo foi difícil. Alguns brasileiros não gostavam de participar de grupos de trabalho com africanos. Nos menosprezavam, diziam que não falávamos bem o português. Também tinham o hábito de falar com a gente na sala de aula e, fora dela, nem nos cumprimentavam, baixavam a cabeça para não nos olhar”, lembra o guineense.
“Agora, se estávamos lado a lado na Biblioteca, vinham falar no Facebook. Não entendo que ‘integração ’ era essa. Falo cara a cara, olho no olho. Estamos construindo uma universidade do nada juntos, alunos e professores, precisávamos conversar, mas pelo Face eu não quero. Depois de reclamarmos, isso já mudou, agora as turmas de brasileiros pedem para que os africanos participem dos grupos”.
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O único foco de tensão atual para Faustino gira em torno da indefinição de seu futuro acadêmico. Com o país passando por uma profunda crise política e a única universidade pública do país foi recentemente privatizada. Até o momento, ele e seus demais compatriotas ainda não sabem onde cursarão o último ano letivo – na Unilab, os últimos três dos 12 trimestres devem ser lecionados no país de origem do estudante. No entanto, de acordo com a assessoria da instituição, se a conclusão do curso em Bissau não for possível, os guineenses poderão fazê-la em outro país africano ou no próprio Brasil.
Não à toa, Faustino é líder estudantil e acabou de terminar seu mandato como representante dos estudantes guineenses. Seu objetivo é se formar e fazer mestrado para trabalhar na administração pública de seu país. “Há muita coisa para mudar por lá”.
Veias abertas
Se em Redenção a relação entre a comunidade e os estudantes é boa, o mesmo não se pode dizer com a turística e aparentemente multicultural Foz do Iguaçu. Os estudantes reclamam de serem hostilizados por uma parcela dos habitantes da cidade que, por sua vez, reclama de agitações dos estudantes.
“Foz é uma cidade misturada, mas cada um fica no seu canto, não se mistura, e é bem conservadora. Por causa da fronteira, tem forte presença militar nas ruas. Minha cultura, a uruguaia, é outra, eu estranho um pouco”, diz a estudante Besna Yacovenco, no 4º semestre de Ciências Políticas e Sociais.
O ápice dos problemas ocorreu no início de junho do ano passado, durante uma festa de aniversário realizada por um grupo de 40 estudantes em uma das moradias da universidade. A Polícia Militar apareceu no local para atender à reclamação de um vizinho por causa do barulho. Os estudantes alegam que os oficiais procuravam o representante da festa para levá-lo preso. Como os jovens afirmaram não terem representante, os policiais chamaram o reforço de cinco viaturas e da tropa de choque. Invadiram o local, entraram em confronto com os residentes, e levaram oito para a delegacia, onde autuaram dois. A Universidade repudiou a truculência da PM, mas parte da imprensa local criticou os alunos. O episódio coincidiu com o período da greve das universidades federais por todo o país, da qual a Unila participou. Além de “baderneiros” e adjetivos afins, também foram classificados como “vagabundos”.
Arquivo pessoal/Besna Yacovenco
Besna participa de protesto em junho de 2012, em Foz, ao lado de estudantes da Unila, contra o impeachment de Fernando Lugo no Paraguai
“A gente não gosta da maneira com que a polícia daqui se relaciona com as pessoas. Ela trata os estudantes da Unila como contrabandistas. A mídia daqui também é conservadora, eles se opõem ao projeto, porque essa integração é um princípio comum da esquerda”, opina Besna, que participou da festa. “Querem evita que a Unila cresça, mas ela quer criar laços com a cidade”, continua, ao lembrar do Festival de Curtas Metragens, que teve boa repercussão na cidade e fazia parte de um curso de extensão.
“Em qualquer lugar do mundo há desconfiança em relação ao estrangeiro. Embora Foz do Iguaçu tenha a fama justa de acolher pessoas de regiões e etnias diferentes, trouxemos um grande número de jovens para uma cidade média [255 mil habitantes], relativamente nova [ 98 anos] e conservadora. Muitos deles ‘saíram de casa’ pela primeira vez na vida, sem conhecer o idioma de início. E sempre tem um que bebe, outro que fuma e um que faz barulho à noite. Quando alguém chama a polícia, as rádios locais exploraram, pois gera notícia. Mas em geral, avaliamos a adaptação dos alunos como muito boa”, justifica Ciacchi.
Besna observa que muitos dos estudantes estrangeiros chegavam ao Brasil com a imagem do país imperialista, mas que, em seu caso, se apaixonou pelo país e pensa em seguir carreira aqui. “Quem sabe com um outro governo ele venha a ser imperialista. Mas agora é o contrário: está avançando no processo de integração”.
Segundo ela, o maior legado até agora foi aprender a respeitar as outras culturas para aprender a respeitar a própria. “Quando cheguei, procurava pessoas de minha nacionalidade para conversar. Hoje moro com uma paraguaia, uma peruana, uma brasileira e uma argentina. Essa diversidade contribui para minha formação profissional. As relações que faço aqui não se destroem, estamos criando uma rede de informação em toda a América. Mesmo que a universidade queira que a gente volte para o nosso cantinho, eu manterei um vínculo”, conclui.