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Religiões de matriz africana sofrem perseguição em comunidades cariocas

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Estudo aponta existência de 847 terreiros no estado, dos quais 430 sofreram atos de discriminação e 132 foram atacados; "há pastores evangélicos convertendo líderes do tráfico e os usando para expulsar os terreiros", diz antropólogo

Brian Mier | Vice Brasil

2014-11-08T08:00:00.000Z

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Matias Maxx / Vice

 

Recentemente, uma bomba foi jogada dentro de um terreiro em Porto Alegre. Não foi um evento isolado. Ataques contra praticantes das religiões de matriz africana estão aumentando em todo o país. Uma das situações mais graves acontece no Rio de Janeiro, onde, em muitas favelas, igrejas evangelizaram os chefes do tráfico e os pressionam a acabar com terreiros e outras manifestações da cultura afro-brasileira nessas comunidades. Um estudo da PUC-Rio e do governo do estado aponta a existência de 847 terreiros no Estado. Desse montante, 430 sofreram atos de discriminação e 132 já foram atacados por evangélicos.

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Certa noite, eu estava em um baile funk, dentro de uma comunidade controlada pelo tráfico, cercado por pessoas bêbadas e chapadas. Em determinado momento, a música parou para deixar um pastor evangélico subir no palco e liderar milhares de pessoas em uma oração. Eu pensei: se o candomblé é, como muitos evangélicos acreditam, “coisa do capeta”, por que eles deixam o funk rolar livremente nas comunidades controladas pelo tráfico evangelizado, com seus fuzis norte-americanos com os adesivos de “soldado de Cristo”? Por que o funk, com suas letras elogiando álcool e violações dos 10 mandamentos, com seu tamborzão, ritmo que traz elementos do candomblé, não só é tolerado como, às vezes, parece ser encorajado por certas figuras religiosas?

Procurando uma resposta para estas perguntas, parti para um terreiro que existe há mais de 50 anos na Baixada Fluminense a fim de falar com Adailton Moreira, antropólogo e um dos líderes do movimento contra a intolerância religiosa. Sentamos debaixo de uma árvore no quintal cercado de estátuas e imagens históricas da cultura ioruba, e ele começou falar.

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“A intolerância tem uma base forte de racismo. Grande parte dos seguidores das religiões de matriz africana é de negros, mulheres, pobres, gays, lésbicas – ou seja, tudo que a sociedade eugênica burguesa elitista neste país não gosta. E existem, de fato, pastores evangélicos convertendo atuais líderes do tráfico e os usando para expulsar os terreiros das comunidades. Tem muitos lugares hoje, como Maré e Jacarezinho, onde o pessoal nem pode usar um incensador. O Estado é completamente omisso. Eu trabalhei na pesquisa da PUC, e a maioria dos praticantes das religiões de matriz africana no estado nos contou que passou por constrangimentos - a violência física, material e imaterial contra eles está aumentando. E não é só nos terreiros: o samba e o jongo também estão desaparecendo nas comunidades. Pouquíssimas comunidades ainda têm jongo. No interior do estado, os quilombolas estão todos sendo evangelizados. Isso é tirar a alma deles, como fizeram com os índios no passado. É um projeto de colonização moderna.”

Matias Maxx / Vice

“E o funk,” perguntei, “por que ele é tolerado? Será que, na cabeça dos pastores evangélicos, é mais fácil lidar com ele porque ele pertence ao diabo, enquanto o candomblé representa outra forma de interpretar o mundo, fora do conceito cristão do universo?”

“Funk não é uma religião, tem outro apelo cultural e político que as religiões de matriz africana não podem ter com o tráfico. E tem um grande projeto econômico atrás dessas ações de arrebanhar fiéis e de promover salvação. Milagres acontecem, mas tudo em uma organização econômica muito perversa.”

Parti para a Maré, conjunto de 16 comunidades com 130 mil habitantes, onde ouvi dizer que só sobrara um terreiro. Procurei Carlos, ex-traficante evangélico e líder comunitário, para ouvir outra opinião sobre o assunto. Após encontrá-lo na Favela Nova Holanda, ele me deu uma carona para a Praça do Forró do Parque União, onde há vários bares e restaurantes excelentes. Paramos ao lado de um córrego, e eu perguntei por que não tem mais terreiros na Maré. “Não acontece em todos os lugares, mas eu sei que tem algumas comunidades onde o tráfico realmente expulsou os terreiros”, ele falou, “como no Morro do Dendê. Vinte anos atrás, você via muitos chefes de tráfico usando guia, seguindo orixás - eles gostavam muito do Zé Pelintra. Mas chegou um tempo em que parece que não estava dando resultado. É tudo o mesmo Deus, certo? Oxalá é o mesmo Deus dos cristãos, mas acho que ficou mais simples para muita gente só rezar para um. Acho que, para os pobres e negros nas favelas, seguir a religião evangélica tem mais sentido hoje em dia, e o candomblé virou outra tradição negra que se elitizou - hoje em dia, é mais a classe média que curte.”

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“E os bailes,” perguntei, “por que um evangélico vai deixar um baile acontecer, com tantas músicas que falam sobre temas como promiscuidade e violência?”

“O baile é uma tradição que vem de muitos anos atrás, antes da chegada da religião. E ele traz lucro para o tráfico, claro. Às vezes, durante o baile, eles tocam louvores, ou vem uma fala de cinco minutos de um pastor. Às vezes, o baile, o tráfico e a religião viram uma coisa só. Ninguém tira o espaço do outro.”

Se ninguém tira o espaço do outro, entra a parceria econômica de funk, drogas e religião. Não pode dizer a mesma coisa para manifestações afro-brasileiras, como o candomblé, que existem há bastante tempo neste país, quando comparadas às igrejas evangélicas. Se o processo de conversão é uma coisa natural, por que se precisa de violência? Por que o Jardim Vale do Sol, terreiro em Duque de Caxias, foi atacado por evangélicos oito vezes? Será que, por causa de algumas pessoas, isso também faz parte de um projeto econômico?

 
Matéria originalmente publicada no site da Vice Brasil. 

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Análise

Patentes na OMC é uma derrota para os países do Sul Global

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Pandemia de covid-19 reativou a debate sobre a quebra de patentes para medicamentos e vacinas. Apesar de sua união em torno do tema, países subdesenvolvidos sofreram uma derrota

Alessandra Monterastelli

Outras Palavras Outras Palavras

2022-07-06T22:35:00.000Z

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No dia 17 de junho, saiu fumaça branca das chaminés da Organização Mundial do Comércio (OMC). A entidade, responsável pela regulação de patentes internacionais, anunciou que chegara a uma conclusão sobre as vacinas contra o coronavírus. Tratava-se do pedido de isenção do acordo TRIPS – sigla em inglês para Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio. Firmado na virada do século, tal compromisso obriga os países-membros da OMC a adotar padrões mais rigorosos de proteção patentária. Consequentemente, encarece o acesso às inovações tecnológicas, inclusive no setor farmacêutico. Mas a decisão final foi amplamente criticada por ativistas da saúde e movimentos populares em todo o mundo, já que a OMC rejeitou a isenção total do TRIPS. 

Em 2020, diante da disseminação do novo coronavírus, África do Sul e Índia protocolaram a proposta de isenção do Acordo, que obteve amplo apoio dos países em desenvolvimento e de baixa renda – com exceção do Brasil. A nova decisão foi saudada pelo Secretariado da OMC e por representantes de países ricos como um resultado sem precedentes, mas ativistas condenam que, na prática, a decisão não atende as necessidades mínimas da maior fatia do mundo. “Houve um esvaziamento da proposta pelos países mais ricos. O texto perdeu totalmente sua força, não trouxe nada novo”, explica Felipe Carvalho, Coordenador Regional da Campanha de Acesso do Médicos Sem Fronteiras ao Outra Saúde.

A conclusão do órgão concedeu uma exceção temporária à restrição das quantidades de vacinas que podem ser exportadas sob licença compulsória; diagnósticos e tratamentos não estão incluídos e devem obedecer ao limite de exportação durante o tempo de licença compulsória – decretada durante emergências sanitárias, como é o caso da pandemia. Além disso, a concessão vale apenas para responder à covid-19 e não tem validade diante de outras crises de saúde. O acordo final não inclui o compartilhamento de segredos comerciais e know-how de fabricação, o que prejudicará a produção de vacinas com tecnologia avançada por países de baixa renda – como é o caso dos imunizantes de RNA.

Carvalho conta que o problema é abordado com frequência em reuniões escpecais da OMS e da ONU.  “Existe um consenso entre especialistas e órgãos multilaterais de que as patentes causam constantes crises de acesso e inovação na saúde”. Em maio, o The Guardian divulgou que a Pfizer lucrou 25,7 bilhões de dólares só no início de 2022 – mais da metade do valor está relacionado à venda de vacinas contra a covid-19. Tim Bierley, ativista do Global Justice Now, denunciou ao jornal britânico que apesar do apelo da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outras organizações, a farmacêutica seguia se recusando a compartilhar a tecnologia de produção do imunizante. O diretor da OMS, Tedros Adhanon, afirmou em 2021 que a pandemia estava sendo prolongada por uma “escandalosa desigualdade” diante do acúmulo de doses de imunizantes por países ricos enquanto países pobres não conseguiam avançar em sua meta de vacinação em massa. 

“Desde a criação do acordo TRIPs nós temos um cenário de constantes crises de acesso a medicamentos essenciais”, conta Felipe. Ele relembra o caso emblemático da epidemia de HIV/AIDS, na década de 1990. “Em 1996 surgiu a primeira terapia para a doença. As pessoas pararam de morrer e passaram a conviver com o vírus. Mas essa terapia não chegou nos países onde o cenário era mais grave”, explica. O ano de 1996 foi também quando o acordo TRIPS entrou em vigor, após sua criação em 1994 e preparação em 1995. “A partir daí se criou uma coalizão na sociedade civil, da qual fazemos parte, chamada Movimento de Luta pelo Acesso a Medicamentos. A pergunta era: por que os preços eram tão altos e o tratamento se tornava inacessível para milhões de pessoas? Nos aprofundamos no sistema de patentes e entendemos que o monopólio era a causa”, relembra.

Apesar do TRIPS possuir cláusulas que permitem flexibilizações, elas são de difícil utilização devido a dois fatores principais: sua não-incorporação completa em leis de países-membros e a pressão que as farmacêuticas exercem sobre as decisões da OMC. Na década de 1990, diante da grave situação vivida na África do Sul – país com maior número de mortes pela AIDS na época – o governo então liderado por Nelson Mandela aprovou uma das medidas previstas no TRIPS para importar genéricos. Na ocasião, Mandela sofreu o processo de 39 farmacêuticas que se opuseram à decisão tomada para conter a crise de saúde pública. Apesar da derrota das corporações na justiça, “esse é um exemplo de como essas empresas e seus países-sede tentam barrar as normas legítimas existentes no TRIPS”, exemplifica Carvalho.

A OMC é uma instituição formada por 164 membros e opera com base na tomada de decisões por consenso. “A OMC falhou em fornecer uma isenção. O acordo coloca os lucros à frente das vidas e mostra que o atual regime de propriedade intelectual falha em proteger a saúde e promover a transferência de tecnologia. Essa não-renúncia estabelece um mau precedente para futuras pandemias e continuará a colocar vidas em risco” declarou Lauren Paremoer, médica e integrante do Peoples’ Health Movement na África do Sul. 

A Health Action International, referência no trabalho para expandir o acesso a medicamentos essenciais, argumentou em nota que a decisão da OMC impõe obstáculos ao licenciamento compulsório, uma das poucas flexibilidades existentes no TRIPS, em troca de uma abertura tímida para a facilitação da exportação de vacinas. Outras entidades representantes da sociedade civil já denunciaram a atuação dos países ricos e vêm aumentando a pressão sobre os governos. O objetivo, segundo seus porta-vozes, é que sejam tomadas medidas concretas para desafiar as regras de monopólio farmacêutico da OMC e garantir mais acesso a medicamentos e tecnologias. 

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