A mais impressionante invenção da humanidade. Assim o escritor John Man descreve o alfabeto. “A escrita foi inventada pelo menos quatro vezes; o alfabeto, uma única”, defende ele, quando fala de seu livro A História do Alfabeto (Ediouro).
Man mostra, entre outras coisas, que tanto o nascimento do alfabeto quanto suas mudanças não são eventos de conotação apenas técnica, mas também política. É, portanto, uma história de quatro mil anos, mas que continua a se movimentar, mais do que comumente se imagina.
Um dos exemplos mais recentes que ele usa é a adoção, nos anos 1990, do mesmo alfabeto utilizado pelos norte-coreanos na Coreia do Sul.
Mas poderia ainda ter contado como a desintegração da Iugoslávia resultou em duas opções completamente distintas: enquanto os croatas decidiram por tomar o alfabeto romano (este que você está lendo) como oficial, os sérvios resolveram que escreveriam usando o alfabeto cirílico (o mesmo usado na Rússia) – dois alfabetos para expressar a mesma língua, o servo-croata.
“Agora, tanto uns quanto os outros dizem que são línguas diferentes; talvez. um dia, isso venha a acontecer de fato”. Britânico, John Man, de 55 anos, estudou, na universidade, alemão e francês. Já viveu entre os indígenas equatorianos waoranis, que tiveram sua língua fixada em alfabeto romano depois de terem sido contatados, nos anos 1960.
Hoje, lê mongol e russo. Durante a entrevista, por telefone, pediu desculpas por não conseguir usar o chinês e lamentou não falar português. “Como escritor, sempre tive interesse pela história da escrita”, conta ele. Seu livro não é um tratado acadêmico sobre o assunto: é uma obra que se propõe a contar os passos mais importantes da ideia de escrever por meio de letras, e não por meio de imagens. Na verdade, é a primeira obra de uma trilogia. Na Inglaterra, acaba de lançar The Gutenberg Revolution (A Revolução de Gutenberg), que trata desse outro momento da história literária humana. Até o fim do ano, planeja concluir The Birth of Writing (O Nascimento da Escrita).
“A história completa do alfabeto formaria uma biblioteca, com seções especificas contendo registros de sistemas alfabéticos e suas culturas, o impacto da capacidade de se ler e escrever ao longo dos séculos, a psicologia da leitura, técnicas de escrita, os estranhos universos de mágicos que transformaram o ABC em ABraCaDabra”, escreve Man. Seu livro é bem mais simples: “Trata do terra como unidade”.
Man cita pesquisas recentes, ainda polêmicas, admite o autor, que apontam para o Egito, há quatro mil anos, o início da ideia do alfabeto. Antes, porém, explica didaticamente a diferença entre escrever usando símbolos, com as letras, e usando imagens, como eram os hieróglifos egípcios. Apesar de parecerem indecifráveis para o público leigo, Man conta que, “na verdade, os peritos conseguem ler hieróglifos com bastante fluência”.
Um sinal indica o assunto tratado, e o que se chama de determinativo esclarece as ambiguidades. Assim, um desenho de materiais para escrita pode significar tanto “escrever” quanto “escriba”, dependendo do determinativo que o segue: se mostra papel para escrita, então é o primeiro caso; se é um homem sentado, estamos no segundo.
“Acho que as sociedades que atingem certo grau de desenvolvimento ‘precisam’ inventar a escrita, e isso ocorreu, provavelmente, de modo independente em quatro lugares diferentes no mundo – na China, na Mesopotâmia, no Egito e na América Central; assim como a invenção da roda , é quase ‘natural’”, diz Man. “Já a invenção do alfabeto parece ter ocorrido só uma vez, justamente porque não é uma decorrência lógica, e adaptada todas as outras”.
Essa criação única teria surgido, narra Man, por volta do ano 2000 a.C., na região do Egito. Seria obra daqueles que os gregos chamariam, no futuro, de bárbaros, ou estrangeiros. “Uma vez criados, os sistemas de escritas são dotados de extraordinária elasticidade”, escreve. “As mudanças, segundo parece, não surgem espontaneamente do seu âmago”.
Ele propõe três ideias básicas que orientariam a história da escrita: “1. Em um sistema de escrita, a complexidade não tem limites e não os impõe; 2. um sistema de escrita durará tanto quanto a sua cultura, a menos que seja alterado a força; 3. novos sistemas de escrita surgem somente em culturas novas, jovens e ambiciosas.”
Misturando um pouco de narrativa policial com aventuras de arqueólogos que lembram Indiana Jones conta que, nos anos 1990, foram encontrados, em regiões desérticas um tanto distantes do Nilo e pouco exploradas, registros de tuna escrita diferente, que seriam as raízes dos nossos “a”, “b”, “r”, “n”, “m”, “p”, “w” e “t” e de mais quatro letras semíticas.
Esse alfabeto primitivo seria a criação de asiáticos que viviam ou atravessavam o Egito, negociando produtos e escravos. Uma presença considerada “incômoda” pelos egípcios, mas necessária para a vida econômica e social.
Em vez de “aprender” apenas a escrita hieroglífica, eles a adaptaram. Um exemplo, que tem como protagonista um suposto autor asiático: “Para começar, ele seleciona imagens de dois objetos corriqueiros, um boi e uma casa. Na escrita hieroglífica e na hierática, a cabeça de um boi era um determinativo que definia o tipo de carne a ser usada em rituais como oferendas fúnebres, mas para os que falam em semítico poderia representar a sua letra inicial, a parada glótica que às vezes é descrita como um ‘ah tossido’ (…). Mais tarde, modificaria a sua pronúncia mais uma vez, transformando-se na nossa letra ‘a’, pronunciada de diversas formas, dependendo da língua e contexto.”
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Man mostra que o nascimento do alfabeto quanto suas mudanças não são eventos de conotação apenas técnica, mas também política
Assim começaria a ser montado esse quebra-cabeça. “Gosto de imaginar que esses asiáticos letrados tinham consciência de estar inventando algo revolucionário. Estavam fazendo uma declaração: o hierático e os hieróglifos são para ‘eles’; isto é, para ‘nós’, uma forma de mostrarmos que não somos estrangeiros desprezados. Com estes poucos sinais, incompreensíveis para os egípcios, e no entanto tão fáceis para os que os conhecem, os asiáticos poderiam registrar as suas transações e posses, além de marcar sua presença e dar aos seus vários povos as suas próprias inscrições fúnebres.”
Claro que não foi bem assim. John Man sabe que os “inventores” do primeiro alfabeto não suspeitavam de como aquilo seria usado, de como os gregos adaptariam essa herança, os árabes inventariam uma escrita que, a rigor, não é exatamente um alfabeto, de como os chineses teriam de recorrer a algo semelhante para usar os computadores, combinando o uso cotidiano da escrita ancestral com um alfabeto próprio, o pinyin. E nada do que ainda está por vir.
O encantador caso do alfabeto coreano
John Man conta, em sua História do Alfabeto, inúmeros episódios que revelam a força da ideia de se criar um alfabeto perfeito e de como isso deu origem aos mais diversos ABCs.
Um dos casos mais curiosos do livro é o da Coreia. Pioneira no uso do tipo móvel de metal, em um trabalho impresso em 1234, a Coreia usava a escrita chinesa, com algumas adaptações. Em 1418, um rei idealista, de 22 anos, chamado Sejong (dinastia Choson), herdeiro da tradição confucionista, sobe ao trono.
Uma das preocupações de Sejong era que os trabalhos editados sob o seu governo não poderiam chegar ao povo. “Seu sentimento de frustração chegou ao fim com a publicação de uma cartilha em chinês falando das virtudes confucianas de piedade, lealdade e fidelidade própria das esposas”, escreve Man. “Convencido de que as pessoas fariam o que estava certo se tivessem como sabê-lo, estimulou os professores a dirigirem-se ao campo levando a cartilha para ‘explicar e repetir o texto, até mesmo para as mulheres e moças’.”
O problema é que a escrita chinesa não era conhecida da população, e seu aprendizado acessível apenas aos eruditos e sábios da corte. Começou a trabalhar, então, com um grupo de conhecedores, em busca de uma escrita coreana. Buscando na tradição mongol fontes para esse novo alfabeto, concluiu o trabalho no inverno de 1443-4.
Publicou, então, a obra Os Sons Corretos para a Instrução da População, em que justificava a adoção de um novo sistema de escrita, de um alfabeto: “Os sons de nossa língua diferem dos sons da China e não são fáceis de adaptar à escrita chinesa. Em consequência, entre os ignorantes, havia muitos que, tendo algo para colocar em palavras, viam-se, no fim das contas, incapazes de expressar seus sentimentos. Isso me afligia muito e por essa razão criei uma nova escrita de 28 letras, que desejo que todos pratiquem para sua maior comodidade e utilizem com vantagem na vida diária.”
O esforço de Sejong encontrou resistência entre os sábios, que não queriam abandonar a escrita da cultura oficial. O primeiro jornal a utilizar o “hangul”, nome do sistema, foi impresso somente em 1896. Durante a ocupação japonesa, entre 1910 e 1945, o sistema foi eliminado à força. Com a divisão da Coreia, o norte comunista adotou o “hangul”, mas a do Sul continuou resistindo. “Mas a popularidade do hangul aumentou rapidamente na medida em que o próprio Sejong foi adotado como ícone do nacionalismo, imagem da perfeição humana (…). Na década de 1990, a sua grande invenção finalmente venceu.”
Trecho de A História do Alfabeto:
“Tudo isso suscita uma questão. Se os etruscos foram tão bem-sucedidos, dominaram as tribos latinas, tinha o seu próprio sistema de escrita, por que a cultura romana não é etrusca? Por que não escrevemos com letras etruscas, em vez de utilizarmos as letras romanas? Como é que os latinos conseguiram reverter essa situação, varrer a Etrúria e tudo que era etrusco, e apossar-se de sua escrita? Tudo poderia ter facilmente ocorrido ao contrário – um império etrusco difundindo a escrita etrusca por toda a Europa e, assim, para o mundo.
(…) Embora os líderes etruscos continuassem dominando Roma por mais de 50 anos, os próprios romanos – pessoas comuns que haviam sido colonizadas pelos etruscos empreendedores – afirmaram a sua recém-adquirida prosperidade e poder por meio de uma austeridade nada etrusca. Pouco se interessavam pelas artes etruscas, suas criações e comércio, e se escandalizavam com as suntuosas orgias de seus vizinhos. Ao contrário dos etruscos, os romanos não permitiam que as mulheres participassem dos banquetes, ou que bebessem.
(…) Quando Volsinii, a última cidade etrusca independente, caiu em 264 a.C., estava arrasada, todas as casas e paredes destroçadas, a sua própria localização esquecida. Roma estava livre para se voltar contra outra velha inimiga, Cartago. Por volta do século I a.C., a língua etrusca havia desaparecido, talvez definitivamente.”
(*) Texto publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo de 13 de março de 2002.