A Palestina agora é um Estado, ainda que com muitas limitações. No dia 29 de novembro, a Organização pela Libertação da Palestina (OLP), oficialmente reconhecida pela comunidade internacional como única representante do povo palestino, foi elevada ao status de Estado observador não-membro pela Assembleia Geral da ONU. O que muda agora é que as autoridades palestinas terão novos mecanismos para se inserir no cenário geopolítico, como recorrer aos tribunais internacionais.
Ainda assim, as limitações dos territórios ocupados impõem-se e, na prática, pouca coisa muda com a decisão. Opera Mundi entrevistou Nasser al-Rayyes, chefe da unidade Nacional de Pesquisa e Defesa Legal da al-Haq (organização com status consultivo especial junto ao Conselho Econômico e Social da ONU, que age para proteger e promover direitos humanos e a aplicação da lei na região).
Aline Baker
Para Nasser al-Rayyes, a solução para o conflito palestino-israelense também envolve a aceitação da população, o que não será fácil
“O fato é que ainda estamos sob ocupação. Ser um Estado não significa que a ocupação acabou. Ainda somos povo, nação, governo e país sob ocupação. Israel ainda está obrigado pela lei internacional como força ocupante e nós ainda somos uma população ocupada”. Leia a entrevista a seguir:
Opera Mundi: O que muda com a aceitação da OLP como Estado observador não-membro?
Nasser al-Rayyes: O mais importante é que faremos parte de convenções internacionais que não admitem membros com status menor do que Estado. Isso abre novos mecanismos, como a Corte Criminal Internacional (CCI) ou a Corte Internacional de Justiça (CIJ), além de convenções de direitos de mulheres e crianças. Ao nos tornarmos Estado parte, será obrigatório para a nossa própria Autoridade Nacional Palestina (ANP) agir sob tais regras, ainda que isso já fosse obrigatório por item em nossa Lei Básica. Outra coisa importante é que agora podemos responsabilizar outros países que não respeitam tais convenções, especialmente Israel.
OM: Mas o que muda em relação à situação anterior na arena diplomática?
NR: Agora, a equação é diferente. Antes, Israel era parte dessas convenções, os palestinos, não. Outros Estados, como terceiras partes do conflito, pediam a Israel que cumprisse as obrigações ligadas à lei internacional e em relação à população ocupada, ou seja, falavam em nome dos palestinos. Agora, nós pediremos que os israelenses cumpram suas obrigações em relação à lei internacional. Mas, veja, opiniões consultivas, como a da CIJ em relação ao muro na Cisjordânia, nenhum país pode pedi-la, apenas a Assembleia Geral ou o Conselho de Segurança. O que podemos fazer é exigir de Israel que cumpra suas responsabilidades em relação à ocupação quando falamos de assentamentos ou à questão da água. Mas não é que ontem éramos um povo sem Estado, hoje somos um povo com Estado e amanhã estaremos liberados. O processo é longo. O importante é que hoje temos mecanismos que não tínhamos antes.
OM: Como pode funcionar isso na prática?
NR: Por exemplo, a Unesco [organização de educação, ciência e cultura da ONU] nos deu status de membro pleno ano passado, e agora podemos registrar propriedades dentro da Palestina e protegê-las, pedir a Israel que devolva o que confiscou, além de forçar Estados que são terceiras partes no conflito a cumprir regras das organizações internacionais e não reconhecer terras que os israelenses propagandeiem como suas. Se Israel comercializa nosso produto nacional como israelense, e a França compra e coloca em seu mercado como produto israelense, podemos responsabilizar a França por não respeitar a lei internacional. Temos que ser realistas, Israel não vai parar de confiscar, mas ao menos podemos proteger parte de nossa propriedade. A ANP lista neste momento propriedades para registro na Unesco.
OM: Palestinos protestaram contra uma onda de repressão da ANP na Cisjordânia, inclusive com greves de fome nas prisões. Como está a situação agora?
NR: Quando falamos de direitos humanos, a situação está muito melhor. Mas temos novos problemas, antes não víamos a ANP atacando a imprensa. Há censura sobre a mídia e sentimos que isso está relacionado ao que acontece no mundo árabe, especialmente após as revoluções. A ANP tem medo de ter os mesmos problemas dentro da Palestina. No começo, tentaram reprimir diversas manifestações e protestos, prendendo jornalistas. Ultimamente, no entanto, e vimos isso durante os protestos em toda a Cisjordânia contra a guerra em Gaza, vimos bandeiras do Hamas, e isso é novo. A ANP não fez nada, não prendeu essas pessoas, pois eles querem conter a situação e não fazê-la explodir.
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OM: Mas qual é situação legal do governo palestino? São duas “cabeças”?
NR: De fato, temos dois governos, um em Gaza e outro na Cisjordânia. O que aconteceu lá atrás é que, na nossa Lei Básica, o presidente tem o direito de demitir qualquer governo. Quando [Mahmoud] Abbas estava no seu período legal como presidente, demitiu o gabinete do Hamas. Ismail Hanyia, na época, não respeitou a decisão, então tornaram-se uma autoridade de facto na Faixa de Gaza, não governam o povo de jure, pela lei, mas por estarem lá e por existirem na prática. Mas, agora, a situação é estranha, pois se a situação em Gaza não é legal, na Cisjordânia também, pois o mandato de Abbas acabou e não ocorreram eleições.
OM: E algum acordo pode ocorrer entre as duas partes?
NR: Tememos um projeto de justiça transicional na Palestina. A sociedade civil está com medo, e nós da al-Haq também, de que se houver uma solução política entre a ANP na Cisjordânia e o Hamas em Gaza, todos os crimes serão esquecidos e perdoados. As organizações de direitos humanos na Palestina querem garantir que isso não aconteça, pois não pode haver justiça e paz num futuro conjunto sem responsabilizar-se as pessoas que violaram a lei e os direitos humanos.
OM: Já que tocou nesse assunto, como vê o uso da justiça transicional aplicada a uma solução do conflito palestino-israelense?
NR: O conflito palestino-israelense é muito complicado, já se arrasta por muito tempo. Se quiser convencer as pessoas de uma solução justa, precisa de uma forma justa de lidar com a situação, e a justiça transicional é importante para convencer ambos os povos, especialmente os palestinos. Não é como o mandato francês na Argélia, em que a solução justa era a volta dos franceses à França. Temos essas pessoas que vivem a nosso lado, e se eles planejam permanecer neste país, temos que achar uma solução que convença os palestinos de que possam viver assim, de um modo que a situação não exploda de novo. Israel precisa reconhecer os palestinos, seus direitos, reconhecer seu sofrimento e compensar suas vítimas de uma forma ou de outra.
*Com a colaboração de Marina Mattar