O conflito armado interno que sacudiu a sociedade salvadorenha entre 1980 e 1992, ano em que foram assinados os Acordos de Paz no Castelo de Chapultepec, no México, deixou um saldo dramático de 75 mil mortos, 8 mil desaparecidos, de acordo com a FESPAD (Fundação de Estudos para a Aplicação do Direito) e 40 mil pessoas incapacitadas na guerra, segundo um relatório da Comissão da Verdade.
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As Forças Armadas salvadorenhas, com a criação dos BIRI (Batalhões de Infantaria de Reação Imediata), uma das principais ferramentas de extermínio da guerra contrainsurgente, bem como o uso de forças combinadas e de grupos paramilitares – esquadrões da morte –, foram responsáveis por matanças que deixaram milhares de civis mortos. Tristemente famosos são os massacres de El Sumpul (1980), El Mozote e La Quesera (1981), onde, em menos de 48 horas, os militares assassinaram quase 2 mil pessoas, incluindo mulheres, crianças e idosos.
Efe
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“Nunca foram cumpridas as recomendações da Comissão da Verdade. Frente ao clamor das vítimas, preferiu-se decretar uma anistia geral e ignorar o chamado por uma séria e profunda reforma do sistema de administração e aplicação da justiça. O Estado tem, ainda, uma dívida enorme com a população”, disse o procurador para defesa dos direitos humanos , David Morales, em uma entrevista exclusiva a Opera Mundi.
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Opera Mundi: Às vésperas da eleição, fica claro que El Salvador não está ainda reconciliado e que, entre a população, entre as vítimas, ainda há algo que não está resolvido. É isso mesmo?
David Morales: É uma dívida histórica que não foi paga pelo Estado e representa um dos mais graves incumprimentos dos Acordos de Paz. Isso não apenas gerou uma profunda discriminação e novas formas de violência institucionalizada para com as vítimas, na medida em que elas foram abandonadas e novamente vitimizadas, mas também afetou o adequado desenvolvimento democrático e institucional previsto pelos Acordos de Paz de 1992.
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OM: O que os Acordos de Paz previam?
DM: A agenda previa uma primeira etapa para realizar o desmonte do conflito e a desmilitarização, incluindo uma profunda reforma militar e policial, e uma etapa de transição que incluía o enfrentamento com a verdade.
Nessa segunda fase, criou-se uma Comissão da Verdade, que apresentou um relatório muito contundente e que traçou uma rota de mudanças para a aplicação da justiça nos crimes de guerra graves, além do ressarcimento das vítimas. Além disso, traçava bases mais objetivas para uma verdadeira reconciliação.
A terceira etapa da agenda era a democratização das instituições, na qual já se prefigurava uma reforma do sistema de justiça, uma profunda reforma eleitoral e a criação de um espaço de debate para enfrentar as graves causas da injustiça econômico-estrutural que deu margem ao conflito.
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Apesar da primeira etapa ter sido concluída com muito sucesso, as fases seguintes sofreram um verdadeiro bloqueio por parte dos setores de maior poder político que controlavam o Estado. O reconhecimento da verdade, a justiça e a reparação para as vítimas foram praticamente negados, e a maioria das recomendações da Comissão da Verdade não foram atendidas pelos três poderes do Estado.
Giorgio Trucchi/Opera Mundi
Morales: “lamentavelmente, o sistema de justiça salvadorenho segue se negando a dar andamento a processos”
Apenas cinco dias depois de a Comissão tornar público seu relatório, que incluía nomes e sobrenomes dos repressores e genocidas salvadorenhos, o Parlamento aprovou uma Lei de Anistia que fechou todas as portas ao julgamento dos criminosos. Além disso, nunca aconteceu uma reforma profunda do sistema de justiça, que foi o grande cúmplice da política de massacre, de extermínio sistemático, de tortura e desaparecimento forçado da população civil durante a guerra.
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Todas essas medidas de proteção aos criminosos de guerra garantiu uma total impunidade e evitou que, em El Salvador, acontecesse uma verdadeira reconciliação.
OM: O que as vítimas fizeram frente à tanta impunidade?
DM: As vítimas e as organizações de direitos humanos lutaram contra a impunidade institucionalizada e tiveram vitórias jurídicas importantes. A CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) já disse que a anistia viola a Convenção Americana de Direitos Humanos, e a Corte Interamericana ordenou que El Salvador não aplique essa lei no caso de violações graves. No ano 2000, a Câmara Constitucional declarou que a Lei de Anistia não era aplicável a graves violações de direitos humanos.
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Como PDDH (Procuradoria para a Defesa dos Direitos Humanos) já dissemos que várias posições da Lei de Anistia são inconstitucionais porque pretendem derrogar direitos das vítimas que são, por natureza, inderrogáveis.
Lamentavelmente, o sistema de justiça salvadorenho segue se negando a dar andamento a processos, e há forças políticas que continuam manipulando a questão, dizendo que atender os pedidos das vítimas geraria uma crise de governabilidade democrática e da paz do país, gerando uma sequela de vinganças. Isso é totalmente falso e é necessário começar a desmontar essa manipulação da realidade.
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OM: Existem espaços para que se possa garantir justiça e reparação às vitimas?
DM: Aconteceram avanços muito positivos. Durante a gestão do último governo, criou-se uma dinâmica que quebra a tradição de negação dos governos anteriores, aceitando que, durante a guerra civil aconteceram gravíssimos crimes contra a humanidade e que o Estado e suas estruturas paramilitares foram responsáveis por eles.
Em várias ocasiões, o próprio presidente da República (Mauricio Funes) pediu perdão e promoveu uma série de medidas de reparação, legitimando a demanda por acesso à justiça por parte das vítimas. Agora, o novo governo deverá continuar nesse caminho e aprofundar essa política.
Além disso, o Instituto de Acesso à Informação Pública já pediu às Forças Armadas ter acesso a seus arquivos e registros para investigar informações relativas a massacres comprovados, e cuja existência é inegável. Lamentavelmente, o ministro de Defesa proibiu o acesso a tal informação, afetando o direito das vítimas.
Como PDDH já estamos implementando uma política institucional que retome o tema da memória histórica, demandando às instituições do Estado a continuidade, ampliação e aprofundamento das medidas de reparação, acompanhando também a agenda de dignificação simbólica que as vítimas promovem para lembrar seu mortos.
É nosso dever medir o estado e a situação de impunidade em El Salvador, ativando nossas faculdades recomendatórias em relação às autoridades do sistema de justiça, que seguem se negando a promover investigações e a avançar em casos que repercutiram como, por exemplo, o assassinato do Monsenhor Romero, os massacres de El Mozote, de El Sumpul e de tantos outros.
OM: Que peso teve a questão dos direitos humanos no processo eleitoral?
DM: Em geral, é um processo que está se desenvolvendo sem maiores problemas e com pouca violência eleitoral. No entanto, lamentamos a abordagem que alguns partidos deram à agenda de segurança pública, querendo voltar a esquemas de militarização, como se o combate à delinquência fosse um conflito armado.
A estratégia da “linha dura” já foi tentada pelos governos passados, sem levar em conta outros aspectos como a prevenção, a capacidade de investigação, de articulação com a parte judicial, a participação cidadã e a depuração policial. O resultado foi o fracasso total dessas políticas repressivas, o fortalecimento da delinquência e o aumento da violência no país.
As práticas sujas de campanha também afetaram o direito da população a ser devidamente informada. Está se tentando abordar o problema de forma simplista, utilizando o populismo punitivo com fins eleitorais. Tudo isso é um desrespeito às milhares de vítimas da delinquências e a seus familiares. Como procurador, rejeito essa atitude de alguns partidos e creio que não é responsável. O desafio para o próximo governo é dar respostas e implementar políticas mais integrais.