Atualizada às 22h14
Maria José Vargas, de 31 anos, irá de Caracas a Quito para ganhar dinheiro. Apesar de querer visitar a Espanha, preferiu viajar ao Equador com duas amigas para poder voltar para casa com pelo menos 1,7 mil dólares. Após retornar ao país, a bancária venezuelana diz que venderá o montante no mercado paralelo de divisas, o que deve lhe render no mínimo 68 mil bolívares, enquanto estima que os gastos da viagem rondarão os 25 mil.
Wikicommons
Aeroporto Internacional de Maiquetía: muitos voos para o exterior partem de Caracas com até 30% dos assentos vazios
A possibilidade de viajar para um destino internacional e voltar com um montante de dólares que supra os gastos da viagem e ainda traga lucro se tornou uma prática frequente nos últimos meses na Venezuela. Com o controle governamental de compra de moeda estrangeira iniciado há dez anos, uma cota de dólares – estabelecida segundo destino e duração da viagem – é vendida a turistas locais pela taxa oficial de 6,30 bolívares, enquanto no mercado paralelo a moeda norte-americana é comprada por mais de seis vezes desde valor.
Leia mais:
Presidente da Venezuela pede poderes especiais para combater corrupção e “guerra econômica”
Sacar os dólares no exterior não é difícil, já que este serviço informal foi ganhando espaço em zonas turísticas frequentadas por venezuelanos, mediante o pagamento de uma comissão. Panamá, Colômbia, México, Peru, Aruba, Curaçao e Argentina são alguns dos países onde se podem encontrar pontos para “raspar o cartão”, ou seja, retirar em dólares toda a cota de dinheiro liberada pelo Cadivi (Comissão de Administração de Divisas da Venezuela) para o uso do cartão de crédito no exterior.
Leia mais:
Venezuela facilitará importações para combater desabastecimento
No ato da reserva com a agência de viagens, por exemplo, Vargas foi informada que o hotel em que estará hospedada na capital equatoriana oferece este serviço. “Dá pra retirar o dinheiro por um ponto e eles te dão o dinheiro e recibos, com uma comissão de 15 a 20% da quantia retirada”, contou a Opera Mundi um dia antes da viagem, explicando sua motivação: “Vou aproveitar a viagem e ainda trazer de 1,7 mil a dois mil dólares. Com certeza vale à pena, porque eu não vou gastar tanto para depois poder vender o excedente”, disse.
Leia mais:
Um ano após última eleição de Chávez, Maduro pede novo modelo econômico na Venezuela
Wikicommons
Outro caminho que vem sendo utilizado para aquisição de dólares pelo Cadivi é a compra de passagens e, depois, pedir que outra pessoa retire a cota liberada de moeda estrangeira no exterior.
[Notas de bolívares, moeda venezuelana]
“Muitos enviam o cartão por algum amigo ou familiar. Tem casos de pessoas que viajam com 15, 20 cartões”, afirmou um agente de câmbio do mercado paralelo de divisas.
Devido à prática, muitos voos internacionais partem de Caracas com até 30% dos assentos vazios. Com isso, a disponibilidade de passagens está cada vez menor. “Devido a essa máfia, quem realmente quer viajar não consegue”, lamentou.
Leia mais:
Maduro diz que empresas que retiverem saída de produtos serão expropriadas
De fato, a dificuldade em obter passagens – esgotadas para a maioria das datas – faz com que empresários estrangeiros que atuam no país sigam diretamente ao aeroporto quando necessitam viajar, à espera de lugares vagos. A prática também faz com que os preços das escassas poltronas disponíveis venham aumentando consideravelmente. “Há uns meses eu conseguia uma passagem para Lima por seis mil bolívares (952 dólares). Nna última vez que fechei para um cliente, custou 25 mil (3,9 mil dólares)”, exemplifica um agente de viagens venezuelano que também preferiu não ser identificado.
Medidas
De olho na tendência, o governo do presidente Nicolás Maduro decidiu aumentar o controle sobre o uso das cotas de moeda estrangeira pelos turistas venezuelanos. Em agosto, quando o esgotamento de passagens e a quantidade de passageiros ausentes em voos internacionais começaram a alertar as autoridades, uma reunião foi realizada entre o Cadivi, o BCV (Banco Central da Venezuela) e a Alav (Associação de Linhas Aéreas da Venezuela) para “avaliar e trocar informação sobre o status das solicitações de aquisição de divisas” com passagens das aerolíneas.
NULL
NULL
Entre as decisões tomadas foi o acompanhamento de passageiros que cancelam voos frequentemente e a entrega de uma lista dos nomes, quinzenalmente, ao Cadivi. Em setembro, o presidente executivo da Alav, Humberto Figuera, afirmou que aviões chegaram a sair do país com até 90 poltronas vazias. Em entrevista ao jornal venezuelano La Verdad, disse ainda que as empresas aéreas decidiram exigir a pessoas que cancelam passagem e pedem a devolução do pagamento que comprovem não ter solicitado moeda estrangeira ao governo.
Outra das medidas anunciadas para evitar a prática de “raspar o cartão” é a implementação de um sistema de captação de impressões digitais em todos os portos, aeroportos e postos fronteiriços do país para que a liberação do cartão de crédito no exterior seja realizada somente quando os venezuelanos efetivamente saírem do país, evitando “passageiros fantasmas”. As máquinas, que promoveriam uma integração entre a imigração venezuelana e o sistema de designação de divisas devem estar ativas nos terminais aéreos a partir de dezembro.
Além disso, inspeções estão sendo realizadas com fiscais do Ministério Público e com a Guarda Nacional no Aeroporto Internacional de Maiquetía, o mais importante do país, para verificar “irregularidades no uso de cotas em moeda estrangeira outorgadas pelo Cadivi”. Nos primeiros operativos, realizados na última semana, foram detectadas situações como mudança de passagens para um destino cuja quantidade de moeda estrangeira liberada seria inferior à solicitada e a ausência de menores para os quais se tinha liberado a cota de 500 dólares para a viagem.
Passageiros que viajavam com cartões de crédito de terceiros também foram identificados nos operativos. Em comunicado, o Ministério Público do país afirma que uma investigação penal será aberta contra os responsáveis pelas infrações e os cartões de crédito com os quais os mesmos solicitaram dividas serão desativados pelo Cadivi “de forma imediata”. Segundo Joel Espinoza, diretor geral de Atuação Processual do MP, o uso irregular das cotas de moeda estrangeira designadas pode ser penalizado com prisão, segundo a legislação venezuelana.
Ainda segundo o comunicado, pode-se observar que “em vários voos reportados como lotados, registrou-se uma ausência de passageiros entre 10 e 12%, situação que está sendo investigada pelas autoridades competentes”. Em somente dois dos dias de operativo, mais de 1,5 mil pessoas foram abordadas nos terminais aéreos do aeroporto “em uma sondagem aleatória”. Destas, mais de 500 tiveram seus dados verificados no sistema do Cadivi, e em 21 casos foram detectadas supostas irregularidades que poderiam representar um “desfalco do Estado”.
A exclusão de viajantes dos leilões do Sicad (Sistema Complementário de Administração de Divisas), para a compra de moeda estrangeira a câmbio oficial, também se evidenciou nesta semana. Quando abertos para turistas, havia quem somente comprasse a passagem para apresentar como parte do processo, sem efetuar a viagem. Na última convocatória, na qual se venderiam cinco milhões de dólares a pessoas naturais, pode participar somente quem justificou estudos no exterior e casos especiais como saúde, pesquisas, esportes, cultura e pagamento de bens requeridos para serviços profissionais.
Diante da articulação internacional de pessoas que contribuem para a irregularidade, o Cadivi também afirma ter contatado a chancelaria venezuelana para que fale com governos da região, como Argentina, Peru e Equador, visando encontrar uma maneira de que a prática seja controlada.
Leia mais:
Colectivos feministas realizaron en Caracas boicot al evento Miss Venezuela
“Os dólares e as reservas são patrimônio de todos os venezuelanos e têm que servir para importar os alimentos que necessitamos, bens e insumos e, lamentavelmente, os grupos inescrupulosos lutam para afetar isso”, disse à imprensa o diretor geral do Saime (Serviço Administrativo de Identificação, Migração e Estrangeiros), Juan Carlos Dugarte, complementando que a instituição “avaliará as sanções que terá que aplicar a estas pessoas”.
*O nome foi alterado a pedido da entrevistada.