Atualizada às 15h55
No dia seguinte à fumaça branca que anunciou o novo papa, Buenos Aires amanheceu com misteriosos cartazes apócrifos que traziam a imagem de Francisco junto a duas palavras: argentino e peronista. Desde então, muito foi estudado para tentar desvendar com exatidão as relações entre o novo pontífice e um dos principais movimentos populares da Argentina no século XX.
“Eu não diria que Francisco é peronista. Agora, que ele aprendeu a fazer política, inclusive política eclesiástica, com uma forma de fazer política que o peronismo delineou durante muitos anos, disso não tenho a menor dúvida”, avalia, em entrevista a Opera Mundi, Verónica Giménez Béliveau, socióloga e pesquisadora do Conicet (equivalente ao CNPq brasileiro).
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Papa Francisco foi membro da Guarda de Ferro, agrupação caracterizada como de direita peronista
Nascido em 1936, Jorge Mario Bergoglio se tornou seminarista aos 21 anos – quando Juan Domingo Perón já havia sido derrocado por um golpe militar – e, com 33 anos, se ordena como jesuíta. Foi eleito bispo em 1992, cardeal em 2001 e presidente da CEA (Conferência Episcopal Argentina) entre 2005 e 2011.
O peronismo, vale lembrar, abarca desde setores da direita a setores do campo popular, passando pelo Montoneros, grupo guerrilheiro que lutou contra a ditadura nos anos 1970.
Sabe-se que, nesta época, Bergoglio foi membro da Guarda de Ferro, agrupação caracterizada como de direita peronista e batizada com o mesmo nome de uma organização fascista e ultracatólica fundada na Romênia em 1927. Nas palavras de Fortunato Mallimaci, sociólogo e um dos maiores especialistas em sociedade e religião da Argentina, Bergoglio foi “um sacerdote com inserção política, socializado na cultura católica, popular e nacionalista de forte caráter estatista, militar e peronista”.
Mallimaci segue: “um homem amante da construção de poder, a que dedica grande parte de seu tempo; uma pessoa de vida modesta e convicções fortes.”
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“Francisco foi jesuíta e esteve à frente da Universidade del Salvador, onde a Guarda de Ferro teve muita força. Não sei qual foi a relação entre o personagem Bergoglio, antes de ser bispo e cardeal, com o peronismo – e essa é uma história que seguramente Bergoglio guarda muito bem. Mas houve uma afinidade, uma aproximação, na forma de mover-se politicamente. E por isso se fala de um papa peronista”, afirma Béliveau.
[Juan Domingo Perón: tomou posse em 1946]
Diante da falta de dados sobre a adesão ideológica de Bergoglio, em seu estilo é possível encontrar explicações aos cartazes que se espalharam pela cidade de Buenos Aires após sua eleição. Há múltiplas formas de ser peronista. Néstor e Cristina Kirchner eram militantes peronistas, mas sindicalistas da oposição e da base do atual governo também o são.
“Existe uma forte afinidade entre os dirigentes católicos e os sindicatos. Não podemos esquecer da Polônia de [Lech] Walesa e de João Paulo II”, diz Béliveau. “E, na Argentina, os sindicatos mais fortes são peronistas.”
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História
Durante a conformação do Estado argentino, entre o fim do século XIX e o começo do século XX, a Igreja Católica foi perdendo poder. Com a implementação de registros civis para nascimentos, mortes e casamentos e o surgimento de cemitérios e escolas laicas, o Estado argentino caminhava em meio a tensões com a Igreja Católica. Em 1884, o então presidente Julio Argentino Roca rompe relações diplomáticas com o Vaticano, recompostas cinco anos depois.
A partir da década de 1930, as relações entre Igreja Católica e Estado na Argentina voltam a convergir mais profundamente. Segundo Béliveau, “o Estado toma legitimidade da Igreja – começam a aparecer bispos em atos oficiais – e a Igreja toma legitimidade e recursos do Estado.” Hoje, a educação confessional na Argentina, majoritariamente católica, recebe subsídios do Estado, que financia parte do salário dos professores através do Ministério de Educação. O Estado argentino, por meio da Secretaria de Culto, também paga os salários e as aposentadorias de integrantes do clero.
Em 1954, o governo civil do general Juan Domingo Perón protagonizou um novo episódio de conflito entre Igreja Católica e o Estado argentino. Em discurso, o líder argentino acusou um setor da Igreja de conspiração para derrubá-lo e as relações ficaram tensas novamente. Em 1955, um golpe militar derrocou o presidente.
Efe
Nascido em 1936, Jorge Mario Bergoglio se tornou seminarista aos 21 anos – quando Juan Domingo Perón havia sido derrocado por golpe
“Existe uma relação muito forte entre Igreja e governos militares. Perón é derrocado por militares com uma simbologia muito forte para o peronismo, porque os aviões que bombardearam a Praça de Maio meses antes do golpe tinham uma cruz onde se lia 'Cristo Vence'”, conta Béliveau. “Isso ajudou a criar um abismo entre uma certa sensibilidade peronista de base, conformada por setores populares e trabalhadores, e os setores hierárquicos da Igreja, que se aprofunda muito com o golpe militar em 1976. O golpe de 1976 foi também um golpe eclesiástico-militar.”
Durante a última ditadura militar (1976-1983), apesar dos vínculos estreitos com a hierarquia eclesiástica, a repressão chegou também a comunidades católicas de base. Até hoje a detenção de sacerdotes jesuítas que trabalhavam em favelas de Buenos Aires suscita debates sobre a cumplicidade de Bergoglio.
A partir daí, prevalece na Argentina o catolicismo conservador das altas esferas eclesiásticas. Nesse contexto, Béliveau define Bergoglio como um “conservador popular”. “Dentro da Igreja argentina ele representa a ala mais moderada. Também não é um revolucionário. Tem uma ideia de moral sexual e familiar que é conservadora, mas ao mesmo tempo é uma pessoa que conhece o terreno, que conhecia sua diocese, que sabe como é a América Latina.”, descreve. “Nesse sentido, se buscamos afinidades com uma forma peronista de fazer política, vamos encontrá-las, sem dúvidas. Mas são dois espaços diferentes de ação.”