Marwan* é médico e trabalhou com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Tal Abyad, no norte da Síria. Após recusar um emprego oferecido por militantes do Estado Islâmico (EI) em Raqqa, onde ele vivia com sua esposa e seus dois filhos, ele passou a ser ameaçado pelo grupo extremista. Sabendo que sua vida estava em perigo, Marwan tomou a decisão de partir para a Europa, pelo mesmo trajeto feito por centenas de milhares de seus compatriotas, passando pela Turquia, pela Macedônia e pela Sérvia até chegar a Amsterdã, na Holanda.
Leia o relato de Marwan a seguir:
“Eu era pediatra na Síria, casado, com dois filhos. Nós vivíamos em Raqqa, conhecida como o reduto do Estado Islâmico (EI). Eu administrava uma clínica privada em uma área pobre da cidade, assim como oferecia cuidados de saúde gratuitos aos deslocados que fugiram para lá vindos de Homs e Aleppo.
Em abril e maio de 2013, houve uma escalada nos confrontos, ataques aéreos e tiroteios. O Exército Livre da Síria (FSA, na sigla em inglês) conquistou território em Raqqa, e a cidade estava sendo bombardeada todos os dias por forças do governo. Um dia, eu estava com um vizinho do lado de fora da minha clínica, quando ele foi baleado bem na minha frente. Foi então que decidi fechar minha clínica – era simplesmente muito perigoso. Uma semana depois, uma bomba de barril atingiu uma mesquita nas proximidades e, ao mesmo tempo, destruiu completamente a minha clínica. Felizmente, naquele momento, não havia ninguém no prédio.
Foi nesse período que ouvi que MSF estava conduzindo entrevistas para uma campanha de vacinação planejada para acontecer em Tal Abyad (100 quilômetros ao norte de Raqqa). Dois dias depois de ter ouvido isso, eu consegui o emprego.
Enquanto isso, uma série de grupos opositores foi se revezando no controle de Raqqa: primeiro, foi o FSA; depois, a Al Nusra; e, no fim de 2013, o EI havia aparecido e estava tentando tomar a região.
Ikran Ngadi
Marwan na Europa: 'meu filho se recusou a falar comigo. Ele achava que eu o tinha abandonado e isso partiu meu coração'
No começo, o EI não se importava com o aspecto médico das coisas. Mas isso não durou muito. Depois de alguns meses, o EI decidiu que precisava controlar hospitais, clínicas e suprimentos médicos em Raqqa. As pessoas começaram a se sentir ameaçadas: a maioria das organizações internacionais saiu de Raqqa e muitos médicos sírios fugiram do país.
Quanto a mim, decidi abrir uma clínica em minha casa para prestar alguma assistência. Como médico, meu lema era: “Tratar pessoas, mas também tentar proteger a si mesmo”.
Pouco tempo depois, membros do EI começaram a vir à minha casa para receber tratamento médico. Eu não ficava confortável com essa situação, mas estava agindo de acordo com a minha ética médica: tratar todos os pacientes independentemente de etnia, religião ou afiliação política.
Mas a aparição de membros do EI na porta da minha casa era aterrorizante, tanto para a minha família quanto para mim. Eles chegavam em jipes, fazendo muito barulho e dirigindo rapidamente. Alguns meses depois, quando a coalizão liderada pelos Estados Unidos (EUA) começou a bombardear o EI, eles chegavam à noite e me forçavam a ir com eles para tratar seus feridos. Minha família ficou com medo que eu não voltasse. Eu pensava o tempo todo que seria morto por ataques aéreos ou pelo EI.
Um dia, o EI veio até mim e me pressionou para que eu me juntasse ao hospital que eles controlavam na cidade. A maioria dos médicos fugiu da Síria e eles precisavam de mim. Mas eu recusei. Como resultado, recebi ameaças. Não havia lugar para se esconder deles – nem em pequenos vilarejos ao redor de Raqqa, nem na própria cidade. Eu comecei a perceber que o único jeito de sobreviver era deixar a Síria. Eu pensei: ‘Prefiro entrar em um daqueles barcos mortais do que arriscar ficar aqui’.
A vida era aterrorizante em Raqqa. Durante o dia, nós convivíamos com os ataques aéreos do governo; à noite, eram os ataques aéreos da coalizão. O barulho dos jatos era tão alto que mais parecia um terremoto. Um amigo próximo foi morto por um ataque do governo.
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Beshr Abdulhadi / Flickr CC
O movimento em rua da cidade síria de Raqqa em foto de 2013
Eu percebi que a vida tinha acabado para mim, e a única coisa que eu tinha a fazer era salvar a minha família. Eu me preocupava com o fato de que meus filhos não teriam uma vida ou sequer teriam acesso à educação na Síria. Eu queria proteger a minha vida para salvar a vida dos meus filhos.
Eu comecei a planejar minha partida. Eu planejei viajar para a Turquia e de lá pegar um barco para a Europa, em direção à Holanda. Minha esposa estava no último mês de gravidez do nosso terceiro filho. Ela estava tão exausta por conta da gravidez que a viagem foi difícil para ela. Então, a ideia era que eu fosse primeiro com um amigo e, uma vez que estivesse com os documentos de imigração em mãos, minha família me seguiria.
Decidi dormir naquela última noite com os meus filhos. Embora eles não soubessem que eu estava indo embora, eles sentiram isso de alguma forma. Eu gostaria de tê-los trazido comigo.
Sair de Raqqa não foi fácil, com confrontos acontecendo entre o EI, combatentes curdos, a Frente Al-Nusra e o FSA. Eu precisei passar por três pontos de controle entre Raqqa e Efreen – foi como passar por três países diferentes.
Quando cheguei à Turquia, ouvi que o governo estava prendendo as pessoas que estavam indo para Esmirna. Lá no fundo, tinha uma voz dentro de mim torcendo para que essa viagem desse errado e eu tivesse de voltar para a Síria.
Quando chegamos à Esmirna, a cidade estava lotada: as pessoas estavam dormindo nas ruas e morrendo de fome – aquelas que haviam dado todo seu dinheiro a traficantes, mas não conseguiram ir embora. Nós ouvimos muitas histórias sobre barcos naufragados. Meu amigo e eu fomos olhar o mar. Foi difícil olhá-lo sabendo que em breve nós poderíamos afundar nele.
Quando chegou a hora, foi uma decisão difícil entrar naquele bote de borracha superlotado. Algumas pessoas estavam chorando e outros estavam orando – todos têm sua própria maneira de lidar com o medo. Chegamos na ilha grega de Farmakonisi e no dia seguinte fomos transferidos para Leros. Nós viajamos da Grécia à Macedónia, depois passamos pela Sérvia. Naquela altura, eu não havia dormido adequadamente há sete dias. Meu sonho era encontrar um travesseiro para dormir, água para tomar um banho e um telefone para ligar para a minha família.
Em Belgrado, eu finalmente consegui obter um chip para ligar para casa. Falei com minha esposa e filha, mas meu filho se recusou a falar comigo. Ele achava que eu o tinha abandonado e isso partiu meu coração.
De Belgrado, nós atravessamos campos de milho, e depois pagamos 450 euros a um contrabandista para nos levar para a Áustria. Nós passamos a noite em um parque em Viena, e pela manhã comprei bilhetes de trem para Amsterdã.
Minha esposa deu à luz em outubro, logo depois da minha chegada a Amsterdã. Ela me mandou uma foto do meu novo filho. Eu falo com a minha família todos os dias, mas meu filho ainda se recusa a falar comigo. Cada vez que eu falo com minha filha, meu coração dispara como o de um cavalo correndo, e eu não consigo acalmá-lo. É muito difícil ouvir os aviões de guerra ao fundo, sabendo que a qualquer momento eles vão atirar suas bombas, sabendo que minha família está apavorada, mas eu estou a milhas de distância e não posso protegê-los.”
*Nome fictício