Num dia claro de primavera, em um pátio enfeitado por glicínias e cheio de participantes de uma conferência – todos muito sérios, ainda que meio bêbados –, nos lamentávamos com um colega jornalista a respeito de tantos empregos que não estão sendo preenchidos, por serem absorvidos ou tratados como trabalhos “paralelos”. Era duro para todos os envolvidos, mas necessário – fazer mais com menos, sabe?
“Ah”, disse ele, “é a aceleração”.
Sua frase antiquada deu forma a algo que já vínhamos notando com crescente apreensão – e que vai muito além do jornalismo. Ouvíamos isso de profissionais criativos, emempregos que pareciam de sonhos, mas que sucumbiam diante de listas de afazeres em constante expansão; de motoristas de ônibus, técnicos hospitalares, operários da construção civil, médicos e advogados que, envergonhados, sussurravam como, por mais que se empenhem, não conseguem dar conta das horas extras e das tarefas extras. (E nem venha perguntar sobre o tempo para a família.)
O dicionário Webster’s define “speedup” [aceleração] como “a exigência de um empregador por uma produção acelerada, sem aumento do pagamento”, e esse costumava ser um termo familiar. Os patrões aceleravam a linha de produção para atender a uma encomenda grande, para dar um empurrãozinho nos lucros ou para punir uma força de trabalho irrequieta. Os trabalhadores a reconheciam; os sindicatos(lembra deles?) ficavam atentos a ela e negociavam a respeito – e, se necessário, cruzavam os braços por causa dela.
Mas agora nós nem notamos a “aceleração” – nem em trabalhos braçais, nem em trabalhos de escritório, nem nos trabalhos femininos, nem nos textos econômicos, e certamente tampouco na mídia (a não ser quando jornalistas se queixam das redações com equipes compactas e tarefas ampliadas).
Hoje, a palavra que empregamosé “produtividade”, um termo insidioso tanto noseu uso quanto no seu horror. A implicação não tão sutil é sempre a seguinte: você não quer ser um membro produtivoda sociedade? Gurus de todo o espectro político se deleitam com o fato de que a produtividade (ou seja, a produção econômica por hora trabalhada) nos EUA consistentemente aparece como a maior do mundo. Sim, a cada ano que passa, os americanos extraem mais valor de cada minuto passado no trabalho.
Só que o que é bom para as empresas americanas não é necessariamente bom para os americanos. Não estamos apenas trabalhando de forma mais inteligente; estamos trabalhando mais. E mais, a ponto de que a força motriz não é mais a laboriosidade americana, e sim algo muito mais predatório.
Veja se não soa familiar: são 4 horas da manhã e a sua cabeça não para; culpado, você percebe que está há uma hora ouvindo pela metade o que o seu filho diz; você checa os e-mails do trabalho no semáforo, na mesa de jantar, na cama; fica apavorado com distrações outrora agradáveis, como jantares com amigos, que passam a ser encaradas como uma coisa a mais na sua lista de tarefas.
Sabe de uma coisa? Não é nada com você. Esses podem parecer problemas pessoais – e certamente a indústriafarmacêutica fica feliz por perpetuar essa noção –, mas eles são na verdade problemas econômicos.
Apenas contabilizando o trabalho que aparece nas planilhas (esqueça aqueles emails às 23 horas), os americanos agora somam uma média de 122 horas a mais por ano do que os britânicos, 378 horas (quase dez semanas!) a mais do que os alemães.
Mito americano
Para entender como chegamos aqui, consideremosinicialmente o mito primordial de Benjamin Franklin, Horatio Alger e Henry Ford: que reclamar do trabalho árduo – mas árduo, árduo mesmo – qualifica você como profundamente não-americano. Quem além do arquetípico assalariado japonês deve tanto da sua autoimagem aos sacrifícios feitos no trabalho? Slacker [vagabundo] é um dos mais agressivos insultos disponíveis diante de companhias educadas.
“Estou exausta”, disse uma professora universitária de “meio período” em Illinois. “Não consigo ajudar meu filho na lição de casa, porque fico corrigindo trabalhos até tarde da noite. Eu me levanto muito cedo durante a semana, deixo de almoçar para economizar – não dinheiro, mas tempo –, e a carga de trabalho nunca cessa. Meu empregador usa e abusa dos empregados em tempo integral, até mais do que de nós que ganhamos por hora. Meu supervisor, por exemplo, comanda um grande departamento. Ele acaba de ser promovido para um novo cargo que lhe exige ainda mais, mas seu cargo à frente do departamento não será preenchido. Ele agora fará paralelamente um trabalho de 60 a 70 horas semanais. Não posso me queixar do excesso de trabalho, porque todo mundo está competindo para pegar aulas suficientes para pagar as contas. Se você perder uma aula, perde um pedaço do seu contracheque. Se não conseguirmos lidar com isso, a aula sempre poderá ser dada a outro professor, que estará desesperado por trabalho ou dinheiro.”
Claro, mas os tempos são duros – os empregadores, lutando para sobreviver à recessão, estão apertando os cintos, certo? Isso é verdade para alguns. Mas, no quadro geral, os dados mostram um padrão mais insidioso. Após despencar em 2008 e 2009, a produção econômica dos EUA se recuperou bem, até quase voltar aos níveis pré- -recessão – nosso desempenho foi melhor do que o da maioria dos nossos colegas do G7. Mas o mesmo não aconteceu com os trabalhadoresamericanos: bem mais gente perdeu seus empregos aqui do que em outros lugares, e menos pessoas foram recontratadas quando a recuperação começou.
Em toda essa conversa sobre a nossa “recuperação sem emprego”, quantas vezes alguém explica a façanha simples que
realmente permite isso? A produtividade dos EUA cresceu em 2009 ao dobro do ritmo de 2008, e esse índice voltou a dobrar em 2010: força de trabalho em baixa, produção em alta, e voilà! Não surpreende que os lucros corporativos tenham tido alta de 22% desde 2007, segundo um novo relatório do Instituto de Política Econômica. Repetindo: Alta. Vinte e dois. Por cento.
Como a América corporativa tem essa ousadia? Você sabe muito bem a resposta, mas, para uma confirmação oficial, vejamos o que diz Erica Groshen, vice-presidente do Federal Reserve, em Nova York: os empregadores têm mais facilidade para “evitarem o acréscimo de empregos permanentes” nos EUA do que, digamos, no Reino Unido ou na Alemanha, declarou ela recentemente à AP. “Eles são menos tolhidos pelas práticas tradicionais de recursos humanos [traduzindo: pela decência] ou por contratos sindicais”. Trocando em miúdos, eis o que diz Carl Van Horn, cientista político da Rutgers: “Tudo se inclina em favor dos empregadores (…). O empregado não tem influência. Se o seu patrão diz: ‘Quero que você venha nos próximos dois sábados’, o que você vai dizer? Que não?”.
Terceiro turno
O que nos leva a outro delírio compartilhado: ser multitarefas. A despeito dos nossos maiores esforços de negação coletiva, uma aritmética simples revela que, mesmo depois da entrada das donas de casa no mercado de trabalho, o trabalho doméstico continuou tendo de ser feito. Claro, parte dele – especialmente o cuidado com os filhos – foi terceirizado, frequentemente por salários ínfimos. Mas, para muitas mulheres, e para um número crescente (mas ainda insuficiente) de homens, um segundo turno de trabalho está à espera todas as noites. E a isso se soma um terceiro turno, já que permanecemos digitalmente amarrados ao escritório durante as horas cada vez mais escassas que realmente passamos em casa.
Ser multitarefa parece a solução óbvia. Mas eis as assustadoras novidades das pesquisas: salvo algumas exceções malucas, a maioria de nós não conseguerealmente conciliar várias tarefas. Tente manter uma conversa com o seu cônjuge enquanto vasculha o BlackBerry: dados empíricos mostram que você não faz nenhuma das duas coisas direito. E não é só isso: se você se dedica constantemente a várias tarefas simultâneas, seus circuitos mentais se desgastam, e o seu cérebro perde a capacidade de concentração.
Chegamos a este ponto por causa de décadas de decisões políticas. Para citar apenas três: entregar o financiamento eleitoral para interesses ricos; dificultar a organização sindical; desregulamentar Wall Street (e fugir completamente de re-regulamentá- -la depois que os financistas quase destruíram a economia global). E, mesmo depois de termos visto essas políticas deixarem a economia global de joelhos, Mitch McConnell e companhia dizem que qualquer questionamento ao poder das corporações equivale a preparar as guilhotinas. Faça-me o favor!
As empresas europeias enfrentam as mesmas pressões que a nossas – mas, na vigorosa economia alemã, por exemplo, férias de seis semanas são a praxe, trabalhar no fim de semana é um último recurso, e a reação das empresas a uma retração não é demitir todo mundo, e sim instituir o Kurzarbeit – redução temporária das jornadas, até as coisas começarem a melhorar. É claro que elas estão ligeiramente atrás de nós em termos de produtividade. Mas pergunte a si mesmo: quem se beneficia com a nossa primeira colocação?
Tradução Rodrigo Leite
Texto originalmente publicado na revista Mother Jones
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