O último livro de David Graeber, Dívida: os primeiros 5.000 anos (Debt: The First 5.000 Years, Melville House Publishing), reconta a história do mundo, argumentando que os sistemas de débito e crédito determinam a ascensão – e o potencial declínio – da civilização humana. Figura proeminente nos movimentos anarquista e antiglobalização, Graeber é professor de antropologia na Goldsmiths University de Londres.
Seu livro coloca a teoria do débito como fundamento para a compreensão da economia global, inclusive a vida moderna e a história em geral. Há algo sobre o aspecto quantitativo da dívida, o modo com que ela consegue “despersonalizar” as relações humanas, que a torna uma força tão poderosa na civilização?
Exatamente. É uma forma de transformar obrigações morais em números e depois usar estes números para justificar atos que não poderiam ser justificados moralmente de outra maneira. E esta é a história da dívida. Enquanto escrevia o livro, percebi que isso tem acontecido já há um bom tempo. O FMI e o que eles fizeram com os países do Sul Global – que é exatamente a mesma coisa que os banqueiros estão começando a fazer nos Estados Unidos – é só uma versão moderna de uma história bem antiga: credores e governos dizendo que existe uma crise financeira, que você deve dinheiro, e que obviamente tem que pagar suas dívidas. Não se discute o perdão da dívida. Portanto, as pessoas vão ter que parar de comer tanto. O dinheiro deve ser tirado dos membros mais vulneráveis da sociedade. Vidas são destruídas, milhões de pessoas morrem. Ninguém cogita apoiar esta política até que alguém diga “bem, eles têm que pagar as dívidas”.
Certo, mas isso não é exclusivo do capitalismo.
É algo muito mais antigo. Essencialmente, qualquer conquistador sabe que a primeira coisa que você deve fazer é convencer as pessoas de que, como você está fazendo o favor de não matá-las, elas te devem alguma coisa. Isso é o tributo. Os mafiosos entendem isso. É uma maneira de transformar uma relação de poder e fazer com que pareça que as vítimas têm alguma culpa moral. E isso tem sido usado há milhares de anos. Mas o problema é que o tiro pode sair pela culatra. Grande parte das revoltas na história da humanidade se deu por causa da dívida. A maioria das pessoas se rebela contra o débito com muito mais frequência do que contra a escravidão, servidão ou um sistema de impostos injusto.
Um exemplo contemporâneo disso poderia ser o calote no pagamento da hipoteca?
Eu acho que tem havido um tipo de resistência constante ultimamente. Acho que a explicação mais convincente sobre a situação atual que eu já vi vem de pessoas comoGeorge Caffentzis e Silvia Federici, que são parte do Coletivo Midnight Notes. Eles vêm da tradição marxista autônoma, e o que eles dizem é que na verdade existem dois ciclos de economia pós-guerra. O primeiro seria a emergência do sistema de bem-estar social keynesiano. Era um tipo de acordo – aquilo que disseram para a classe trabalhadora das democracias capitalistas do Atlântico Norte: “Se nós concordarmos em não sermos inimigos, podemos fazer um trato. Vocês aumentam a produtividade, nós aumentamos os salários. Nós permitimos que vocês se unam em sindicatos, e lhes proporcionamos várias formas de segurança social e benefícios para os seus filhos”.
E esta foi a primeira vez na história do capitalismo em que a elite pôde deixar de se preocupar com uma revolta iminente.
Exatamente, mas teve de comprar uma substancial fatia do proletariado em alguns países. Você pode observar que no período entre 1945 até meados dos anos 1970 a maioria dos conflitos sociais passou a se concentrar nas pessoas que queriam participar deste acordo. Se liberdade política significa benefícios e direitos sociais e econômicos, bem, as minorias e outros grupos excluídos no Atlântico Norte passaram a exigir a sua parte, como o movimento dos direitos civis. Você vê os povos do Sul Global e as mulheres, finalmente, também querendo participar avidamente deste acordo. Mas a questão é que, obviamente, o capitalismo não funciona assim. Não dá para estender este contrato nem para a maioria, que dirá para todos.
Então, de acordo com esta análise, a democracia vive em conflito com o capitalismo, já que o capitalismo é necessariamente excludente e a democracia tende à inclusão.
A democracia naquele momento presumia certos benefícios e garantias econômicas. Direitos econômicos, basicamente. E a questão é que houve uma crise de inclusão nos anos 1970. Chegou-se ao ponto em que não era possível estender o acordo a todas as pessoas que estavam exigindo participar dele. E os sinais dessa crise estrutural foram o choque do petróleo, o choque financeiro, previsões do apocalipse ecológico, e tudo isso começou em meados dos anos 1970. Todos poderiam ter direitos democráticos, mas estes não correspondiam mais a direitos econômicos.
E o que acontece com o trato entre a classe econômica e o Estado?
Daí, eles te oferecem o crédito. Surgem os planos de previdência privada, e esta ideia de que todos devem ter uma casa, uma hipoteca.
A rede de segurança social é substituída pelo crédito privado.
Sim. E isso é basicamente o que aconteceu no período neoliberal, do fim dos anos 1970 até agora, que na verdade acabou em 2008. Ele teve mil faces. Por exemplo, a ideia de que o microcrédito iria salvar o terceiro mundo. Você tem os planos de previdência privada e toda essa questão complexa com a hipoteca, e o que poderia ser alegado é que mais e mais pessoas exigiam o direito ao crédito.
A narrativa da casa própria foi central na versão estadunidense dessa história.
Pois bem, aí é que está. Pode-se argumentar que, já que sob o neoliberalismo todos aprenderam que devem ver a si mesmos como pequenas corporações, mais e mais pessoas começaram a dizer: “Bem, se eu tenho que ser uma corporação, por que não posso ser uma corporação financeira? Por que não posso começar a gerar dinheiro do nada, como eles fazem?” Então, mais e mais pessoas simplesmente começaram a exigir o direito de construir uma vida razoável para elas e para as pessoas que elas amam através do crédito. Se todos agem assim, a situação financeira terá que vir abaixo em algum momento.
No final do seu livro, você chama a atenção para os “pobres não industriais”. Achei interessante que seu reconhecimento não foi para os esforçados ativistas no movimento por justiça social ou algo do gênero – você menciona isso também. Mas você realmente destacou os pobres não industriais, que são o que a maioria das pessoas simplesmente identificaria como preguiçosos.
Um dos estranhos poderes da lógica da dívida, que permeou primeiro as sociedades do Atlântico Norte e depois quase todo o resto do mundo sob o princípio organizacional do capitalismo, é que as pessoas estão sob a pressão da vergonha e humilhação que acompanham o estar em débito. Isso provoca uma necessidade frenética de transformar toda e qualquer coisa ao redor delas em fonte de lucro. E as pessoas que se submetem a esta lógica são as pessoas industriais. É uma lógica profundamente desumanizante e terrivelmente destrutiva. Nós temos que nos libertar disso e perceber que os que se recusam a se submeter, mesmo que isso signifique continuar sendo pobre, têm valores genuínos, como cuidar uns dos outros e estar com os entes queridos, manter boas relações sociais, divertir-se e apenas viver a vida, viver a vida de verdade. É criticamente importante avaliar isso se queremos salvar o planeta, porque o problema hoje não é que não estejamos trabalhando o suficiente, o problema é que estamos trabalhando demais.
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Tradução: Carolina de Assis
Publicado originalmente na revista Brooklyn Rail e reproduzido no número 02 da revista Samuel
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