Tão belo quando visto no Mapparium, da Biblioteca Mary Baker Eddy, em Boston, o planeta pede soluções verdes
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Vamos imaginar, por um momento, que estamos no ano de 2100, que o nível de CO2 na atmosfera está gradualmente diminuindo a 350 ppm (partes por milhão) e que, portanto, o pior já passou. Vamos tentar entender como é que se chegou a isso, analisando um século de progresso hesitante mas, em última instância, decisivo.
A primeira decisão, claramente, foi a mais importante. Em 2011, após 22 anos gaguejando, pigarreando e proferindo discursos circulares, os governos do mundo todo — movidos por uma série de inundações devastadoras em todos os continentes, que galvanizaram o já crescente movimento ecológico em todo o planeta — seguiram, ainda que de má vontade, os primeiros passos no sentido da criação de um limite às emissões de carbono.
A batalha certamente não foi fácil: os países em desenvolvimento insistiram, com razão, que o limite não poderia se aplicar a eles, e a China insistiu em ainda se apresentar como um dos países emergentes. Ainda assim, a briga política contra as grandes indústrias do petróleo e do carvão chegou a um fim — seriam necessários ainda muitos anos para que essas indústrias deixassem de ser uma parte poderosa da economia, mas a era do combustível de origem fóssil chegou a um fim no dia em que todas as partes aceitaram assinar o tratado no Centro de Conferências de Nairóbi.
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Tecnologias do passado
Algumas coisas aconteceram de maneira ainda mais rápida do que qualquer pessoa (com a exceção dos economistas) ousaria esperar. Finalmente, quem quer que observasse uma planilha rapidamente perceberia que os futuros investimentos teriam de ser ecologicamente corretos — que a energia à base de carvão se tornaria cada vez mais cara, até o dia em que mantê-la deixaria de fazer sentido. E então o rumo da história começou a mudar: o dinheiro começou a ser puxado no sentido indicado pela nova força de gravidade da economia. Investiu-se em ferrovias, fabricantes de material isolante e todas as outras indústrias que apresentam um custo energético relativamente baixo.
O efeito sobre os consumidores não foi significativamente grande, já que poucas das famílias contam com um diretor financeiro culpado de já planejar o retorno monetário das emissões futuras. Ainda assim, cada família passou a receber um cheque de compensação, todo mês, por permitir que a indústria utilize a sua fração de emissão de CO2, o que significou um fluxo significativo de capital. Algumas optaram por televisores de tela plana, mas uma parcela significativa da população acabou comprando aquecedores de água à base de energia solar, automóveis híbridos plug-in e tomates de produção local.
Enquanto isso, os governos começaram a perceber em que direção o futuro seguia, o que levou a uma maior aceitação das pressões por investimento em pesquisa científica. Oportunamente, após cada sessão do legislativo, os bolsos dos barões da energia eólica e solar ficaram mais cheios, levando-os a exigir cada vez mais que os subsídios governamentais das “tecnologias do passado” fossem retirados.
Produção de energia
Nada disso, no entanto, aconteceu de maneira rápida o suficiente para que fosse contido o ímpeto do aquecimento global. Ano após ano, vimos as catástrofes se acumularem. A mudança na temperatura global causada pelo homem, que atingia no máximo um grau no início da década, chegou a dois, e o custo aumentou cada vez mais. Parte dela foi insidiosa e diária — como as perdas crescentes nas colheitas, enquanto a temperatura aumentava e a água evaporava, tornando o ambiente propício para a proliferação de mosquitos transmissores de doenças, o que prejudicou não apenas a população global, cada vez maior, como também o orçamento para o desenvolvimento de vários países.
À medida que o tempo passou, tornou-se cada vez mais claro que não havia uma maneira simples de expulsar os motores de combustão da economia mundial, instalar alguns poucos painéis solares e fazer com que as coisas voltassem a ser como eram. Não apenas a pressão exercida sobre as velhas economias, por conta das mudanças climáticas, criava uma verdadeira tensão, como também as novas tecnologias acabavam por se impor. O sol e o vento estavam em todos os lugares, mas sempre difusos. Por isso, um novo tipo de rede de distribuição de energia acabou sendo criada: a produção não estava mais localizada em uma única central, mas espalhada por milhões de telhados. Outros processos de produção seguiram a mesma lógica. Após um século de consolidação da agricultura em determinadas regiões, por exemplo, redes locais de produção de alimentos começaram a se espalhar, substituindo boa parte da produção monocultural, industrial e dependente da energia suja do sistema que tem dominado o planeta desde a Segunda Guerra Mundial.
Deflagração do caos
Se isso soa como se o processo houvesse sido simples, no entanto — bem, não foi. O imenso abismo entre os países ricos e os pobres foi o mais intratável dos problemas, já que as populações da Ásia, da África e da América Latina se sentiram como se os frutos da modernidade estivessem lhes sendo negado. A deflagração do caos foi assustadora, quando migrantes de regiões de baixa altitude da Índia e da China começaram a ocupar os territórios centrais, e refugiados dos novos desertos africanos se mudaram para áreas já densamente populosas. E sempre houve as enchentes, característica então perene de qualquer parte úmida do planeta — o que só piora a situação de uma população já sofrida.
A Europa, o Japão e os EUA — e, à medida que o tempo passou, cada vez mais também a Índia e a China — tentaram remediar a situação, mas os esforços no sentido de oferecer assistência tecnológica e auxílio para situações de crise se anularam diante do dano causado por suas emissões de carbono. As taxas de mortalidade aumentaram em todo o planeta e a expectativa de vida caiu. Houve uma atmosfera de iminência do horror malthusiano, por muito tempo previsto, e guerras e conflitos aconteceram regularmente.
Mas houve também uma espécie muito mais popular e generalizada de revolta política dos povos de todo o mundo, que insistiam para que as mudanças no sentido da estabilidade climática fossem feitas de modo mais rápido, independentemente dos custos envolvidos. O número icônico, 350, passou a significar principalmente uma coisa: fechar as minas de carvão e de areia betuminosa, mantendo o carvão no chão. Dentro de algumas décadas, isso acabou por acontecer — mais ou menos. O mundo seguia em frente com dificuldade, mas ainda seguia, com a Internet fornecendo os links que antes apenas os aviões a jato forneciam.
Dimensões da crise
Ao menos o nível de carbono na atmosfera se estabilizou. Os pequenos aumentos na concentração de CO2 — mensurados na estação ao lado do vulcão Mauna Loa, na qual se começou a fazer esse tipo de pesquisa, nos anos 50 — deram lugar a minúsculos decréscimos, e as florestas e oceanos passaram a sugar parte do carbono depositado na atmosfera.
Isso não fez com que “o problema deixasse de existir” e, na verdade, à medida que o século passava, os pesquisadores passaram a dizer que mesmo uma concentração de 350 ppm era demais, que deveríamos tentar nos aproximar dos níveis de 280 ppm que predominaram nos tempos anteriores à Revolução Industrial. Não se podia voltar a congelar o Ártico e a vida oceânica continuava ameaçada graças aos níveis elevados de concentração de ácidos. No entanto, a partir de certo ponto, as dimensões da crise começaram a se tornar menores, tanto porque as temperaturas se estabilizaram, quanto porque a sociedade havia sido remodelada, de modo que se encontrava então menos vulnerável, mais resiliente.
O essencial — a cultura, a civilização e a natureza preservada — acabou permanecendo mais ou menos intacto. Foi um século miserável , mas não, no fim das contas, impossível.
Panorama positivo
Ainda que este seja um panorama positivo, devemos parar e pensar. Seria mais fácil e talvez mais plausível fazer previsões mais sombrias. Algumas coisas aqui merecem especial atenção: primeiramente, as ações que exigem a alteração do preço do carbono ocorrem muito cedo, no cenário narrado, ainda em 2011. Está bastante claro que precisamos nos reorientar rumo a essa direção. Em segundo lugar, as intervenções decisivas devem menos à tecnologia do que à política — de muitas formas, o resultado será decidido pela capacidade de organização da população, ao lidar com o problema da emissão de CO2 na atmosfera. Há muitas variáveis que não podem ser previstas, incluindo esta última. No entanto, ao menos podemos ter alguma influência, construindo um movimento político atual que atravesse fronteiras, independa de religião, ideologia e língua, e nos permita entender a complicada situação pela qual passamos, mundialmente.
Tradução por Henrique Mendes
* Texto publicado originalmente na revista The Solutions Journal
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