Feito com óxido de magnésio, a produção do cimento verde libera menos gás carbônico do que a tradicional
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“Como você sabe, o cimento está em toda parte”, diz Nikolaos Vlasopoulos, um engenheiro de meio ambiente do Imperial College de Londres, sentado na sala de conferências mal iluminada de um decrépito prédio de sete andares, sustentado por aquilo que era o próprio tema da conversa. “O cimento está ao nosso redor”.
No ano passado, o mundo produziu 3,6 bilhões de toneladas de cimento — a mistura mineral que se solidifica, transformando-se em concreto, quando combinada com água, areia e outros materiais — e essa quantidade poderia crescer em um bilhão de toneladas até 2050. Em um âmbito global, a única substância mais usada do que o concreto é, em volume total, a água.
As virtudes do cimento, explica Vlasopoulos, foram por muito tempo óbvias: ele é barato, fluido e, de um modo quase inexplicável, torna-se rígido como uma pedra. Mas há outro detalhe importante, raramente reconhecido: o cimento é sujo. Não é que ele vá acabar manchando suas roupas — embora esse problema tenha atormentado pedreiros por séculos. O principal ingrediente é o calcário, constituído principalmente de carbonato de cálcio, que é o resquício da decomposição das conchas de certos animais marinhos.
A receita para a produção do cimento exige o aquecimento do calcário, processo que envolve a utilização de combustíveis fósseis. Além disso, quando aquecido, o calcário libera dióxido de carbono diretamente na atmosfera, contribuindo para o aquecimento global. A produção de cimento é responsável por 5% de toda a emissão humana de dióxido de carbono. Nos Estados Unidos, apenas o consumo de combustível fóssil (para transporte, geração de eletricidade, manufatura de substâncias químicas e outros usos) e a indústria do aço e do ferro liberam mais gases de efeito estufa. E com países emergentes como a China e a Índia usando tanto cimento para construir sua ascensão, a sujeira do material acaba por se tornar uma das facetas mais negativas da globalização.
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Material sujo
Se a enorme contribuição do cimento para a poluição do ar é frequentemente menosprezada pelo público em geral, Vlasopoulos, de 31 anos, tem consciência do problema já há algum tempo. Ele cresceu em Patras, uma cidade portuária da Grécia. Seu pai era engenheiro e sua mãe trabalhava em um banco e, durante suas férias de verão da Faculdade Dimokirtion Panepistimion Thrakis, onde estudava engenharia do meio ambiente, Vlasopoulos ajudava o tio em uma fábrica de cimento. Seu trabalho consistia na montagem do equipamento que mede o nível de emissão de dióxido de carbono. Eles eram altos: normalmente, uma fábrica produz quase uma tonelada de dióxido de carbono para cada tonelada de cimento. Vlasopoulos achava o trabalho interessante, mas não via o cimento presente em seu futuro. Era um material desinteressante, velho e sujo.
Então, um de seus professores no Imperial College, onde ele fazia mestrado em engenharia, recebeu um financiamento para o exame de um novo tipo de cimento, fabricado por uma companhia australiana. O professor, Christopher Cheeseman, persuadiu Vlasopoulos a colaborar no projeto, conquistando assim seu PhD. “Essa era a chance de realizar algum trabalho realmente bacana”, diz Vlasopoulos, em sua típica maneira de subestimar os fatos.
Os desenvolvedores australianos procuravam uma nova receita, misturando o cimento Portland com óxido de magnésio. Esperavam assim reduzir as emissões de carbono, uma vez que o óxido de magnésio pode tomar o lugar de parte do calcário e não precisa ser aquecido a uma temperatura tão alta. O calcário deve ser aquecido até 1420 graus Celsius, mas o óxido de magnésio, apenas até 704 graus, uma temperatura que pode ser atingida por meio da biomassa e de outros combustíveis que liberam menos gás carbônico, cortando a o consumo de combustível fóssil.
No entanto, Vlasopoulos rapidamente percebeu, no fim das contas, que a combinação não reduzia realmente a emissão de dióxido de carbono. Em alguns casos, essa emissão quase dobrava, já que o próprio óxido de magnésio é obtido por meio do aquecimento de carbonato de magnésio, um processo que libera muito dióxido de carbono. “Eu me lembro de ter me sentido muito desapontado. Mas ainda assim achávamos que era uma ideia digna de atenção, e tentamos então encontrar outra forma de resolver o problema”.
Tempero secreto
Na época em que Vlasopoulos assumiu a pesquisa, em 2004, as grandes empresas produtoras de cimento do mundo procuravam uma forma de tornar o cimento Portland mais ecologicamente palatável. Os produtores adicionaram subprodutos, como detritos; resíduos de carvão, como cinzas; e outros materiais, como óxido de magnésio, para aumentar a mistura do cimento, requerindo assim menos cimento Portland puro. Eles fizeram experimentos com aditivos minerais para reduzir a temperatura de preparação dos materiais.
Mas é difícil modificar um produto cuja química nem mesmo é muito bem entendida. “Nós nunca entendemos completamente o processo químico que enrijece o cimento”, diz Hamlin Jennings, especialista em cimento e chefe do Centro para o Concreto Sustentável do MIT, uma das várias iniciativas acadêmicas que buscam a elaboração do “cimento verde”.
Enquanto as companhias de produção de cimento trabalhavam com o material original, Vlasopoulos tomou outro rumo. Ele passou a trabalhar com os silicatos de magnésio, compostos livres de carbono e derivados de talco, serpentina, olivina e outros minerais. A quantidade desse material disponível no mundo hoje é de cerca de 10 bilhões de toneladas, o que é um fator importante, já que, se o fermento acabar, não se fazem mais bolos.
Vlasopoulos ainda não está tão disposto a explicar exatamente como o seu composto experimental funciona. Seu tempero secreto talvez seja um segredo bastante lucrativo. Várias patentes foram criadas. Ele nos revela apenas isso: há alguns anos, começou a misturar óxido de magnésio com alguns outros compostos químicos, que ele próprio desenvolveu, e água. A mistura se transformou em uma pequena esfera sólida. Ele a levou até o escritório de Cheeseman. “Era possível sentir o calor se desprendendo da pequena esfera”, garante Cheeseman. As reações químicas haviam sido ativadas e energia era liberada. No entanto, eles tentaram não se entusiasmar demais. “Quer dizer, estamos falando de cimento aqui — não é exatamente a coisa mais sexy do mundo”, diz Cheeseman.
Incubadora de empresas
A certa altura, Vlasopoulos fundou uma empresa, a Novacem, para desenvolver o novo cimento com a ajuda de Cheeseman. A firma, com mais de uma dúzia de empregados e pareceria com algumas das maiores produtoras de cimento do mundo, está localizada em uma incubadora de empresas para iniciativas de alta tecnologia do Imperial College.
Embora ainda esteja desenvolvendo seus métodos, a Novacem ainda concorre com pelo menos cinco outras companhias e centros universitários na tentativa de desenvolver um cimento mais verde. “Por causa de toda a atenção que se dá ao carbono nos dias de hoje, vários empresários surgiram no ramo”, diz Jennings, do MIT. “Eles veem o negócio pelo prisma da oportunidade”. Sendo a indústria do cimento um ramo de US$170 bilhões por ano, investimentos não param de surgir.
Uma companhia californiana chamada Calera tem aquele que é, talvez, o método menos usual: ela aproveita o dióxido de carbono emitido por uma usina de energia e mistura-o com água do mar ou salmoura para criar os carbonatos necessários na produção do cimento. Eles podem ser adicionados ao cimento Portland para substituir parte ou todo o calcário. A Calera é sustentada por um investimento de US$50 milhões de Vinod Khosla, o engenheiro de computação que é, talvez, o mais respeitado e endinheirado investidor na área de tecnologias verdes do Vale do Silício. “Na verdade, nós estamos fazendo cimento de CO2“, diz o fundador da companhia, Brent Constantz. “Tomamos o CO2 que deveria ser liberado na atmosfera e o transformamos em cimento”. A tecnologia ainda está sendo desenvolvida, com uma fábrica de demonstração em Moss Landing, na Califórnia, e uma parceria com um grupo chinês que garante a construção de uma nova fábrica, próxima a uma mina de carvão da Mongólia Interior, onde eles planejam usar as emissões de dióxido de carbono para produzir cimento.
Calix, uma empresa australiana, fabrica cimento utilizando vapor super-aquecido, que modifica as partículas do cimento e o torna mais puro e quimicamente mais reativo. O processo também separa o dióxido de carbono, tornando mais fácil a captura do gás e mantendo-o fora da atmosfera.
A Louisiana Tech University (Universidade Tecnológica de Louisiana), da mesma forma como a Novacem ou a Calera, está tentando dispensar o uso do calcário por meio do desenvolvimento de uma pasta chamada de geopolímero e feita de cinzas volantes, hidróxido de sódio e hidróxido de potássio. “Eventualmente, a poeira toda vai baixar e uma dessas ideias vai se mostrar mais eficaz”, diz Jennings.
Duro obstáculo
No começo, houve muito ceticismo em relação ao cimento da Novacem, especialmente da parte da maior empreiteira privada do Reino Unido, a Laing O'Rourke. O executivo responsável pelo acompanhamento de pesquisas promissoras, Dheeraj Bhardwaj, ouviu falar sobre o produto da Novacem por meio de seus contatos acadêmicos. Ele observou o composto químico, achou que tudo parecia funcionar bem e, alguns anos mais tarde, levou a ideia até o presidente da empresa, que teve muitas dúvidas sobre a viabilidade do produto. Não havia como o cimento pudesse ser forte o suficiente para o uso comercial, ele disse. O cimento precisava de calcário. Quando o material da Novacem atingisse 40 megapascal, a mínima força necessária para garantir a estabilidade estrutural, talvez ele se interessasse.
Sete dias mais tarde, um pequeno pedaço de cimento da Novacem atingiu a marca. Vinte e oito dias mais tarde, ele atingiu 60 Megapascal. Bhardwaj levou então os novos resultados até seu chefe, que disse: “Vamos fazer isso funcionar”. Laing O'Rourke é agora o maior parceiro da Novacem. Hoje, após muita experimenação, o cimento da Novacem se aproxima da marca de 80 Megapascal. O concreto feito com esse cimento é comparável, em força, a grande parte do concreto comum.
O maior obstáculo encontrado por esses produtores ainda é a história. O cimento Portland funciona. Sempre funcionou, desde aquela tarde na cozinha de Joseph Aspdin, em 1824. “O cimento já está aí há muito tempo”, diz Bhardwaj. “As pessoas confiam nele. Elas podem olhar ao seu redor e ver edifícios que sobreviveram por centenas de anos. Para a Novacem, o teste da durabilidade vai exigir tempo. Se eu tiver de construir uma ponte ou um edifício usando o cimento da Novacem, como é que convenço as pessoas de que isso está ok? Esse é o desafio. Ninguém quer que uma ponte caia”.
Indagado se cruzaria uma ponte construída com o cimento da Novacem, Bhardwaj disse: “Eu não teria um problema com isso”. Mas a ponte ainda não foi construída.
Tradução por Henrique Mendes
* Texto publicado originalmente na revista Smithsonian Magazine
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