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Já ouvi dizer que, se você der uma volta por Waikiki, é apenas questão de tempo para que alguém lhe entregue um folheto no qual mulheres seminuas aparecem brandindo revólveres, em meio a frases em inglês e, talvez, em japonês, anunciando um dos muitos clubes de tiro locais. O maior deles, o Royal Hawaiian Shooting Club, alardeia instrutores fluentes em japonês, que é também o idioma-padrão do seu site. Há anos essa atividade havaiana tem como alvo os turistas japoneses.
Os estandes de tiros cheios de japoneses em Waikiki representam também uma intersecção entre duas sociedades com abordagens completamente diferentes acerca das armas de fogo e do seu papel na sociedade. As leis de controle de armas nos Estados Unidos são as mais brandas do mundo desenvolvido e sua taxa de homicídios por armas de fogo são as mais elevadas. Dos 23 países “ricos” do mundo, a taxa de assassinatos por armas de fogo nos Estados Unidos alcança quase 20 vezes a dos demais. Com quase uma arma de fogo particular por pessoa, o índice de porte de armas nos Estados Unidos é o mais elevado do mundo.
Mas qual é o papel das armas de fogo no Japão, nação menos armada do mundo desenvolvido e talvez a mais controladora? Em 2008, os EUA tiveram mais de 12 mil homicídios envolvendo armas de fogo. O Japão inteiro registrou apenas 11. E esse foi um ano ruim: 2006 teve o incrível número de duas mortes, e quando em 2007 essa cifra saltou para 22, houve um escândalo nacional. Para efeito de comparação, também em 2008, 587 norte-americanos foram mortos apenas por disparos acidentais de armas de fogo.
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Ilegais
No Japão, quase ninguém possui arma de fogo. A maior parte delas é ilegal, com onerosas restrições à aquisição e manutenção dos poucos tipos autorizados. Mesmo a famosa Yakuza, espécie de máfia japonesa, tende a abrir mão dos tiros; as poucas exceções geralmente viram um grande assunto na imprensa.
Os turistas japoneses que dão seus tirinhos no Royal Hawaiian Shooting Club violariam três leis diferentes caso estivessem no Japão — porte de armas, posse de munição não licenciada e mais uma infração por fazer os disparos —, das quais só a primeira já é punível com um a dez anos de prisão. As únicas armas que cidadãos japoneses podem comprar e usar legalmente são espingardas de caça ou pistolas de ar comprimido, e mesmo assim não é fácil. O processo foi detalhado num importante estudo de David Kopel sobre o controle de armas no Japão, publicado em 1993 pela Asia Pacific Law Review e ainda citado como atual (Kopel, longe de ser algum esquerdista lunático, é membro da Associação Nacional do Rifle dos Estados Unidos).
Para conseguir uma arma de fogo no Japão, em primeiro lugar é preciso assistir a um dia inteiro de aula e passar por uma prova escrita. Também é necessário fazer uma aula prática num estande de tiro e ser aprovado. Aí, você segue para um hospital e se submete a um exame mental e um exame de drogas, e apresenta os resultados à polícia. Finalmente, você passa por uma rigorosa verificação de antecedentes criminais e de ligação com grupos criminosos e extremistas, e se torna então o feliz novo proprietário de uma espingarda ou pistola de ar. Só não se esqueça de fornecer à polícia a documentação sobre o local específico da arma na sua casa, e também da munição – ambas precisam ficar trancadas e guardadas separadamente.
Diferenças
Até mesmo o marco básico da abordagem japonesa à posse de armas é quase diametralmente oposto à postura dos Estados Unidos. A legislação norte-americana acerca de armas começa pela afirmação da Segunda Emenda constitucional sobre “o direito de as pessoas manterem e portarem armas”, e se estreita a partir daí. Já a legislação japonesa começa com uma lei de 1958, segundo a qual “nenhuma pessoa deve possuir uma arma de fogo, ou armas de fogo, ou uma espada, ou espadas”. Exceções foram acrescidas posteriormente.
Evidentemente, Japão e Estados Unidos estão separados por várias diferenças culturais e históricas bem mais amplas do que suas políticas sobre armas. Kopel explica que, por alguma razão, os japoneses tendem a ser mais tolerantes com a polícia e seus poderes de busca e apreensão, necessários para fiscalizar a proibição. Mas a polícia japonesa não portava armas de fogo até que, em 1946, a autoridade norte-americana de ocupação a obrigasse a isso. Atualmente, os policiais japoneses recebem mais horas de treinamento do que seus colegas norte-americanos, são proibidos de portarem armas fora do expediente e investem horas no estudo das artes marciais.
As maneiras japonesa e norte-americana de pensar a criminalidade, na privacidade e nos poderes policiais, são tão diferentes que é funcionalmente impossível isolar completamente os dois regimes de controles de armas e compará-los. Tampouco é muito fácil equilibrar os custos e benefícios da inusual abordagem japonesa, a qual ajuda o país a se manter com a segunda menor taxa de homicídios do mundo, ainda que ao custo daquilo que Kopel chama de “Estado policial”, uma preocupante sugestão de que a nação entrega ao governo poderes demais sobre os seus cidadãos. Afinal de contas, a Segunda Emenda da Constituição norte-americana destina-se em parte a manter “a segurança de um Estado livre”, ao garantir que o governo não detenha o monopólio do uso da força.
Tradução por Rodrigo Leite
* Texto originalmente publicado no site The Atlantic
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