O silêncio imperou na maior parte do centro da cidade de São Paulo no final de semana passado, durante a 19ª edição da antes tradicional e concorrida Virada Cultural. A circulação de pessoas pelo centro parecia idêntica à de quaisquer sábados e domingos, na maior parte do tempo e dos lugares. Nascida sob o signo de um evento plural, agregador e unificador concentrado em 24 horas de programação cultural ininterrupta, a Virada tem sido descaracterizada e desmontada silenciosamente desde a administração do tucano João Doria (2017-18). Novos picos foram atingidos na atual gestão do emedebista Ricardo Nunes, iniciada em 2021 com a morte do titular tucano Bruno Covas. O prefeito Nunes pleiteia a recondução nas eleições municipais deste ano e optou neste ano por infraestrutura cara, com programação mínima e popularesca.
A prefeitura anunciou um investimento recorde nesta edição, de R$ 59,8 milhões (R$ 33,4 milhões em infraestrutura e R$ 26,4 milhões em cachês artísticos, segundo dados oficiais), mas a cidade viu resultados em outra direção, de abandono e esvaziamento. A gestão Nunes entregou um evento reduzido em termos de atrações, de tempo de permanência dos artistas no palco, de áreas artísticas ocupadas pela festa pública, e assim por diante. Para ocultar que apenas a área musical foi contemplada, a Prefeitura apresentou uma lista de programação enorme e multidisciplinar, mas à custa de inserir na agenda espetáculos e mostras já em cartaz na cidade, programação regular de bibliotecas públicas e de espaços privados e fechados (como Itaú Cultural e Instituto Moreira Salles) e itens como “visitas monitoradas ao Palácio da Justiça”. Esse último programa se repetiu 16 vezes na lista da Prefeitura, com diferença apenas no horário das ditas visitas. Não houve sinal de marcas indeléveis de edições passadas, como projeções de videoarte, intervenções urbanas ou espetáculos de dança e circo ao ar livre.
Desse modo, foram por água abaixo conceitos depurados desde 2005, como o cruzamento e a convivência por 24 horas de tribos diversas num espaço delimitado e concentrado, a programação ininterrupta e a ocupação em larga escala do espaço público ao ar livre, fosse no centro (local original da Virada) ou em bairros e regiões periféricas (para onde ela se expandiu em anos posteriores). O encontro de paulistanos e brasileiros de toda origem e de toda parte virou fumaça em 2024.
A lógica que norteou a maioria absoluta das edições passadas foi desarticulada de alto a baixo neste ano. Um retrato loquaz do espírito da coisa foi o palco armado no hoje privatizado Vale do Anhangabaú, cercado por tapumes e grades de ferro para dificultar o tráfego livre dos cidadãos e longas filas de entrada. O palco com alta capacidade de atração de público foi usado por sete atrações, quase todas de perfil mainstream: Joelma, Pabllo Vittar, Djonga, Ara Ketu, Dennis DJ, Matuê e o jamaicano Julian Marley. O outro único palco instalado na região central, na avenida São João, seria a contraparte underground, com shows sem nenhuma vinculação temática de nomes como Ajuliacosta, Kannario e Baile da D27, Deekapz, a cantora gospel Cassiane e o italiano Alborosie. Um terceiro palco funcionou em espaço fechado, na Praça das Artes, com jongos, maracatus, tambores de crioula e Olodum.
O grande intervalo entre shows, sem palcos colaterais com programações alternativas simultâneas, exterminou o sentido de a população espectadora permanecer no território público por várias, 12 ou 24 ou horas. Sob o pretexto (justo) da descentralização, dez arenas foram espalhadas por bairros periféricos como Parelheiros, Heliópolis, Cidade Tiradentes e Brasilândia, com cerca de cinco atrações por palco em horários espaçados (em geral um show na noite de sábado e três na tarde de domingo). Os soluços de programação provocaram, como era de imaginar, relatos de diversos shows esvaziados e até sem espectadores. O cantor e compositor Lenine, por exemplo, se apresentou para 600 pessoas na Arena Butantã, no final da tarde de sábado. Mestres de cerimônia recrutados entre influenciadores digitais leram textos de exaltação ao prefeito e à secretária de Cultura que deixou o cargo para se candidatar à Câmara de Vereadores, também pelo MDB.
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(Foto: Paulo Pinto/Agencia Brasil)
Longe dos tempos de experimentação e de investimento em trabalhos pouco patrocináveis pelo chamado mercado, o perfil ultra-popular predominou dramaticamente, com artistas de axé e pagodão baiano (Cláudia Leitte, É o Tchan, Psirico), sertanejo (Leonardo, Israel & Rodolfo, Maiara & Maraísa, Michel Teló, Marcos & Belutti, Maria Cecília & Rodolfo, Bruninho & Dav, Gabi & Raphai, Yasmin Santos), pop (Gloria Groove), funk (Latino, Kevin o Chris, MC Daniel), forró e piseiro (Solange Almeida, Mano Walter, Tarcísio do Acordeon, Júnior Vianna, Rastapé, Marcelo & Rayane, Filomena Bagaceira), arrocha (Silvanno Salles), pagode (Raça Negra, Salgadinho), reggae (Planta e Raiz, Adão Negro), trap (L7nnon, MC Cabelinho, MC Hariel, Veigh, Major RD, MC Lele JP, Shaodree, Victin, Teto, WIU), infantil (Mundo Bita, Fera Neném, Bob Zoom) e música gospel e religiosa (Nicoli Francini, Sarah Beatriz, Eli Soares, Thalles Roberto, Ton Carfi, Padre Antônio Maria, Padre Alessandro Campos, Marcelo Aguiar, Kemilly Santos). O aspecto da valorização da história da música brasileira, característico na maioria das edições da Virada, foi totalmente ignorado. Entre artistas mais veteranos, estiveram na programação Geraldo Azevedo, Lia de Itamaracá, Ilê Aiyê, Sandra de Sá, Ivo Meirelles, Maria Rita e Vanessa da Mata.
No geral, a política de Ricardo Nunes cumpriu à risca o receituário neoliberal, com ocupação mínima do espaço público, altos cachês para artistas estabelecidos (o maior deles, de R$ 550 mil, foi para o sertanejo Leonardo) e preocupação mercadológica/eleitoral acima da artística/cultural. O MDB, partido de Nunes, começou como oposição possível à esquerda da ditadura militar e governa há décadas com verniz de partido de centro (ou centrão) – na Virada Cultural 2024, em nada se distinguiu da fobia à cultura e às artes advogada e praticada pela extrema-direita e pelo protofascismo.
Aliada do neoliberalismo que se mistura na paisagem com o fascismo, a grande mídia pouco viu de estranho, errado ou escandaloso na Virada 2024. A cobertura geral foi morna quanto aos aspectos artísticos e francamente dócil – ou “neutra”, dirão – em relação aos métodos administrativos e à gestão pública operada à direita. “Virada Cultural bate recorde e reúne 4,5 milhões de pessoas em SP”, escreveu em suas redes sociais a TV Cultura, emissora pública sob controle do governo estadual. Em 2019, a gestão de Bruno Covas já havia alardeado o recorde, mas com outra estimativa de público, de cerca de 5 milhões de espectadores. Naquele ano, haviam sido anunciadas 1.200 atrações, contra 550 anunciadas neste ano. Alguma coisa parece estar fora da ordem.
(*) Pedro Alexandre Sanches é Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)” (Boitempo, 2004)