O que seria do Brasil sem o Sistema Único de Saúde no enfrentamento à covid-19? Ouso responder: o fracasso.
Temos um problema crasso com a ausência de comando do Governo Federal. Como secretária de saúde, sinto falta da liderança do ministro de Saúde Luiz Henrique Mandetta, no início da pandemia, que indicava os caminhos que devíamos seguir no enfrentamento à covid-19, avaliando dados, indicadores, taxas, a experiência de outros países. Os pequenos municípios não possuem cientistas em seus quadros, estatísticos que auxiliem na leitura dos dados e dos indicadores de saúde. Tudo acontece muito rapidamente e com base nas evidências da realidade, sem muito tempo e uso dos instrumentos de planejamento nos moldes que a Academia estuda. A gente planeja sempre, mas de uma forma mais rápida à necessidade do desafio a ser enfrentado, muitas vezes antes do seu registro.
Mas, ao mesmo tempo, posso dizer que estar imersa na realidade, no território, nos potencializa na tomada de decisões de enfrentamento à covid-19, e compensa, na atualidade, a ausência de atuação norteadora do Ministério da Saúde. A autonomia reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal aos Municípios e também aos Estados indica protagonismo que se confronta com a paralisia do Governo Federal atualmente, e também ratifica que os caminhos regionais e locais tomados para enfrentar a epidemia são legítimos e necessários.
Muito provavelmente o negacionismo e a falta de atuação do Governo Federal nos últimos dois meses impulsionem à discussão de um novo Pacto Federativo no futuro, em que Estados e Municípios alcançarão outro patamar na autonomia, na divisão dos recursos públicos e na possibilidade de seu uso.
Mas o que possibilitou que, na ausência do Governo Federal, Estados e Municípios tomassem a dianteira desse enfrentamento?
Além da realidade bater diariamente às suas portas, e da autonomia dos entes, a direção única de cada Secretária e Secretário em sua esfera de governo, bem como a interlocução regional (regionalização) possibilitou que a dianteira fosse tomada para resguardar a população da covid-19 no âmbito do Sistema Único de Saúde.
O Sistema Único de Saúde é pujante, poderoso, forte, robusto no enfrentamento à covid-19 no Brasil principalmente por ele ser um sistema, o que significa dizer que sua estrutura é composta por entes da Federação que atuam de forma regionalizada e hierarquizada, em níveis de complexidade crescente, de forma compartilhada. Na ausência de um dos entes, é possível que os outros assumam a direção em seus territórios, compensando essa falta.
Aqui na Paraíba, são os serviços de saúde públicos que, desde o início da pandemia, têm sido o paradigma para discussão de protocolos, fluxos, formas de tratamento da covid-19 para os demais serviços. Mais do que isso, são eles que têm a maior demanda de atendimentos e, por conseguinte, enfrentam os maiores desafios e encontram saídas para dirimi-los, sendo usados de paradigmas para os demais serviços de saúde privados.
O papel das vigilâncias epidemiológicas estaduais e municipais também é primordial. São elas que monitoram os casos positivos, operacionalizam a aplicação dos testes rápidos, observam as taxas de letalidade, investigam os óbitos, elaboram os boletins diários, ou seja, acompanham a curva epidemiológica de perto. Tratam-se de serviços do SUS primordiais para o enfrentamento das doenças, pois coletam os dados necessários para que as Secretarias de Saúde possam rever ações e planejar novas formas de combater os agravos. Os dados diários gerais de contaminados e mortos pela covid-19 que são publicizados na imprensa são decorrência do trabalho das Vigilâncias epidemiológicas de cada Município e dos Estados.
Os Agentes Comunitários de Saúde também são atores importantes nesse processo. Em Conde, juntamente com outros trabalhadores de serviços de saúde que ficaram praticamente paralisados na época da pandemia, eles foram protagonistas do Projeto Sentinelas da Saúde, por meio do qual cada equipe da Saúde da Família elaborou banco de dados com os usuários dos grupos de risco para covid-19 e monitorou-os por meio de telefonemas e visitas às suas residências, com todos os cuidados de distanciamento social e proteção individual necessários. Os grupos de risco referem-se aos usuários com doenças crônicas, doenças respiratórias, idosos, gestantes e pessoas com deficiência. Como os trabalhadores dos outros serviços eram decorrentes da Equipe Multiprofissional e do Centro Especializado em Reabilitação Física e Auditiva, a atuação em conjunto com as equipes da Saúde da Família também propiciou interação entre a Atenção Básica e Especializada, uma das metas contínuas de qualquer sistema de saúde. Some-se a esse monitoramento e ligação telefônica a efetivação da telemedicina realizada pelas médicas e médico da Atenção Básica, promovendo o cuidado e evitando que os usuários ficassem reclusos em casa, sem o devido atendimento.
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O SÚS é pujante, poderoso, forte, robusto no enfrentamento à covid-19 no Brasil principalmente por ele ser um sistema
Aqui na Paraíba, a pandemia levou à criação da Central de Regulação Estadual Hospitalar exclusiva para os casos da covid-19, coordenada pela Secretaria de Saúde do Estado, serviço novo. A regulação é um processo essencial para garantir o acesso aos serviços de saúde especializados, as conhecidas vagas, ou o lugar na fila do SUS, propiciando a integralidade do atendimento dos usuários. Para os serviços de saúde regulares, aqui na Paraíba a regulação fica centralizada nas Secretarias de Saúde das cidades de referência para os municípios encaminhadores, como a capital João Pessoa é, na grande maioria das vezes, para os usuários do SUS do município de Conde. A experiência exitosa da regulação para a covid-19 vem reforçar a necessidade da Secretaria de Saúde do Governo do Estado em encampar e liderar essa função para todos os serviços de saúde da Paraíba, planejando inclusive a regionalização, pedido esse que sempre foi enfatizado como necessário pelo atual Secretário de Saúde da Prefeitura de João Pessoa nas instâncias deliberativas do SUS, como a Comissão Intergestores Regional da Mata Atlântica e a Comissão Intergestores Bipartite.
A atenção à saúde prestada pelos diversos serviços de saúde de média e alta complexidade, como o Pronto Atendimento em Conde, as Unidades de Pronto Atendimento (UPA) das diversas cidades paraibanas, os Hospitais Municipais, os Hospitais municipais e estaduais que se tornaram exclusivos para o atendimento da covid-19, como o Clementino Fraga e o Santa Isabel em João Pessoal, os Serviços de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) demonstram também a força do SUS no atendimento aos usuários positivados. À medida que a pandemia ia se alastrando pelo território paraibano, os diversos serviços de saúde dos municípios e do estado foram sendo reorganizados para atender a demanda dos usuários suspeitos da covid-19, que estivessem acometidos de sintomas de síndrome gripal.
Sem esse sistema público de saúde, que está presente em cada uma das cidades paraibanas e brasileiras, de forma compartilhada e hierarquizada no âmbito dos serviços, não seria possível que os usuários tivessem recebido atendimento e tratamento para a covid-19.
Nem tudo são flores, é verdade, e os meios de comunicação são experts em demonstrar as dificuldades do SUS em gerir serviços subfinanciados e com regras cada dia mais duras no uso dos recursos públicos. Não posso esquecer de dizer os inúmeros desafios que os gestores de Saúde têm em seu dia-a-dia para viabilizar o acesso ao direito à saúde com os protocolos necessários. Adquirir equipamentos médicos e medicamentos, contratar pessoal, reformar imóveis públicos, convencer os usuários a seguirem os tratamentos médicos recomendados, dentre tantos outras, são problemáticas diárias na gestão da saúde. Todavia, mesmo com tantos eventos instigadores, o atendimento vem sendo prestado na Paraíba a todos os usuários acometidos pela covid-19, que ao serem curados, voltam para sua casa sem nenhuma dívida financeira com os serviços de saúde públicos, dada a gratuidade do SUS, a não ser o agradecimento aos profissionais de saúde que o atenderam.
Se tem um achado que essa pandemia traz a nós, brasileiras e brasileiros, é que sem o SUS, os dados da pandemia no Brasil provavelmente seriam mais devastadores do que a agressividade com que ela se apresenta em nosso país. Espero que esse achado repercuta em mudanças no futuro no aumento do financiamento e na facilitação, com controle, da gestão dos recursos públicos do SUS.
*Renata Martins Domingos é secretária de Saúde da Prefeitura de Conde, na Paraíba