O ambiente é um ginásio poliesportivo numa área pobre da Bolívia. Em um
ringue, lutadores musculosos se atracam com frágeis cholas (pronuncia-se “tchôlas”), a figura
da típica mulher humilde boliviana, com saias longas, xales rendados,
tranças e traços indígenas. Pelo alto-falante, ecoa a voz do locutor:
“Mr. Atlas ataca, sai com uma tesoura. La Paceña cai, mas logo reage…
Ela está brava. Sobe nas cordas e prepara um salto da terceira corda…
O público se levanta!”. Ao redor do ringue, centenas de pessoas, com
saquinhos de pipoca nas mãos, acompanham cada momento do espetáculo.
No Ginásio Multifuncional de la Ceja, na cidade de El Alto, periferia
de La Paz, domingo é dia de arquibancada lotada, algumas vezes com
mais de mil espectadores. Pessoas de todas as idades, na maioria
provenientes de El Alto (região pobre de maioria indígena), pagam cerca
de 12 bolivianos (3,50 reais) para assistir à sessão de luta livre.
No ringue, as figuras mais inusitadas debatem-se em golpes
espetaculares, como o “voo do anjo”, em que um lutador sobe às cordas
para se atirar, e a “volta ao mundo”, em que um oponente gira o
outro, segurando-o pelas pernas.
As lutas mais populares seguem um roteiro: de um lado, homens musculosos
e mascarados encarnam o lutador “rude” ou “mau”, sob nomes de guerra
como Falcão Negro, Barba Negra e Vampiro; do outro, mulheres trajando a
típica roupa andina – chapéu-coco, saia rodada e xale bordado –
encarnam as lutadoras “técnicas” ou “boas”. Os combatentes se jogam de
um lado para o outro. A mulher cai, mas se recupera. A plateia vibra.
E, no final, elas sempre vencem.
Chola em ação: lutas seguem roteiros previamente definidos para agradar ao público
Inspirada na luta livre mexicana, a boliviana remonta aos anos 1950,
quando foi introduzida por imigrantes. Nas décadas seguintes, diversos
lutadores mexicanos e argentinos passaram pelo país, treinando gente
como o ex-campeão Diego Armando Condarco, conhecido como Matemático.
“Vinham lutadores de outros países. Era um esporte muito apoiado e
profissional nesta época”, conta ele, hoje empresário da modalidade.
Na década de 1990, o esporte caiu em decadência com a chegada da TV às
casas mais humildes, esvaziando os ginásios. A virada só aconteceu em
2001, quando Juan Mamami, empresário do grupo Los Titanes del Ring,
teve a ideia de incluir no espetáculo as cholas, das
etnias aymará ou quéchua.
“Queria voltar a encher o ginásio, então
pensei em primeiro fazer lutas de anões. Até trouxe um lutador peruano.
Mas, depois, pensei nas cholitas, e a luta ficou muito popular de
novo”, declarou.
Graças a essa popularidade, os grupos se multiplicaram. Hoje, são
dezenas em todo o país. Em todos, a presença das mulheres é fundamental.
Entram em cena figuras como Julia La Paceña, Carmen Rosa La Campeona,
Yolanda La Amorosa e Sarita La Romántica. “Nós temos quatro cholitas no
nosso grupo hoje em dia, mas já estamos treinando mais seis. Elas são
fundamentais para o show”, explica Matemático, que dirige o grupo 100%
Lucha de Titanes.
As sessões têm atraído cada vez mais turistas, que pagam o dobro e às
vezes até três vezes mais por lugares confortáveis, bem perto do
ringue. Nas ruas do centro de La Paz, cartazes (como este abaixo) anunciam as lutas de cholas como mais uma opção de entretenimento turístico na capital
boliviana.
Popularidade
A participação das mulheres chama a atenção em um país que ainda está
longe de alcançar a igualdade entre os gêneros. Seguindo os costumes
tradicionais, ainda são poucas as mulheres bolivianas
profissionalizadas e, embora formem quase metade da força de trabalho,
elas têm um nível de educação bem inferior ao dos homens.
Assim, o fenômeno das lutadoras inverte o papel tradicional e traz uma
oportunidade de reconhecimento social para integrantes de uma classe
social e etnia que raramente sai na TV.
“Não tenho ciúmes da minha esposa”, conta o também lutador Santos
Senso, codinome “Acetinado”. “Até fico orgulhoso, porque lá em casa
eles dizem: 'Bem, já que ninguém da família sonhou em aparecer na
TV, pelo menos a sua mulher ficou famosa’.”
Preconceito
Apenas cinco anos atrás, a Miss Bolívia Gabriela Oviedo fez uma
declaração polêmica. Queixou-se à imprensa internacional sobre quem não
conhecia o país e “pensa que somos todos índios”, essa “gente de baixa
estatura”. Afirmou que, pelo contrário, “aqui (no leste) somos todos
altos e brancos e sabemos falar inglês”.
Yolanda La Amorosa pareceu responder à provocação anos mais
tarde, quando disse que as lutadoras “usam com orgulho esta vestimenta
pelas quais muitas vezes nos menosprezam e debocham de nós”.
De fato, a situação está mudando. Há 15 anos, não havia nenhuma
apresentadora de TV de origem indígena no país. Hoje, elas conquistam
espaço nos programas jornalísticos e de entretenimento. Em janeiro, o
presidente Evo Morales instituiu o primeiro gabinete paritário do país,
garantindo dez ministérios para elas e dez para homens.
Lutadora aplica voadora. “Elas são
fundamentais para o show”, diz Matemático
Comédia
Mas se, por um lado, a luta feminina marca uma auto-afirmação, por
outro ela reforça o viés cômico da luta livre boliviana, que tem um ar
de comédia de costumes. É comum, por exemplo, que as cholas usem a saia
para dar golpes, ou até a levantem para “cegar” o adversário, gerando
risos no público.
Meses antes das eleições presidenciais que levaram Morales à
reeleição, com 64% dos votos, a trupe 100% Lucha de Titanes levou
multidões aos seus duelos, anunciando “a luta do ano”.
De um lado, um anão vestia-se como o “Bombom de La Llauta”, uma
referência pejorativa ao candidato oposicionista Manfred Reyes Villa,
conhecido popularmente como bombón (nas últimas eleições, a imagem do
candidato como “anão” fazia referência à sua distância nas pesquisas em
relação a Evo). Do outro, um lutador de porte avantajado incorporava
“Evo, o Filho do Povo”. Obviamente, era o lutador-presidente quem
vencia. “Foi um sucesso. O grupo cresceu muito depois desse número”,
conta Matemático.
Baixos salários
No entanto, embora o esporte esteja vivendo um novo auge, este sucesso
não se traduz em condições melhores para os participantes. “Todos têm
outro emprego”, conta Matemático – ele mesmo, professor durante a
semana.
Em média, um lutador ganha de 70 a 80 bolivianos (20 reais) por
apresentação, podendo chegar até 200 bolivianos (57 reais) em alguns
casos. Mas, no geral, reinam a informalidade e a exploração. “Há
diferentes tipos de contratos. Alguns empresários pagam o transporte
até o local, outros querem que a gente rache o aluguel do ônibus. Tem
vezes que nós temos que pagar tudo sozinhos”, conta Santos Senso, que
faz bicos como pedreiro.
Segundo ele, há uma enorme disputa entre os empresários do esporte –
que querem ter exclusividade sobre os lutadores, embora raramente
ofereçam contratos estáveis. A saída, muitas vezes, é “escapar” durante
alguns dias se aparecer alguma oferta rentável – e escutar uma bronca
depois. Além disso, não há dados sobre quanto dinheiro o esporte
movimenta nem quanto os empresários lucram com ele.
Acidentes
Outro problema da informalidade é a total falta de segurança e de
estrutura. Como o mesmo ringue é alugado por diferentes grupos para
treinos e apresentações no interior, “muitas vezes ele é antigo e já
está todo quebrado, tem buracos e rachaduras”, diz Senso.
E não são poucos os acidentes. Em 2004, um integrante do grupo Titanes
del Ring morreu ao quebrar o pescoço durante uma luta. “Além de sermos
mal pagos, nós não temos nenhuma proteção porque não temos uma
associação que nos ajude. Os lutadores argentinos, por exemplo, têm
seguro de saúde e de vida”, compara Senso.
O próprio lutador, por sinal, chegou a sofrer um deslocamento no
quadril durante uma luta. “Os meus colegas fizeram uma vaquinha,
levantaram dinheiro para o atendimento e os medicamentos, e ficou por
isso, mesmo. É o que costuma acontecer”, resigna-se.
Leia a segunda parte:
“Rainha dos ringues” desconta no esporte a violência que sofreu na infância
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