A França está declarando guerra à disseminação livre de informações e cultura pela internet, considerada “pirataria” pelas autoridades. A partir desta quinta-feira (30/9), os franceses que realizarem downloads e trocas de arquivos protegidos por direitos autorais devem começar a receber advertências formais, primeira etapa repreensiva de uma nova lei de combate à “pirataria” na rede.
Aprovado no ano passado, o texto criou um órgão público chamado Hadopi (sigla em francês para Alta Autoridade para Difusão de Obras e Proteção dos Direitos na Internet), que agora começa a monitorar o tráfego de arquivos na rede. Apesar dos 10 mil IPs que devem ser devassados por dia, nada indica que os mais de 20 milhões de usuários conectados em banda larga irão abandonar o hábito de baixar músicas e filmes sem autorização.
Governo e representantes do meio artístico alegam que o objetivo é proteger os artistas, os interesses das indústrias cultural e zelar pela segurança. A Sacem (Sociedade de Autores, Compositores e Editores de Música francesa) reúne mais de 100 mil empresas e os direitos autorais de 40 milhões de obras. Ela é um dos cinco grandes órgãos responsáveis pela elaboração da lista de arquivos a serem rastreados pela empresa privada Trident Media Guard, contratada para executar o monitoramento dos dados.
Luiza Duarte/Opera Mundi
Sites para downloads continuam ativos. Na janela do computador a pergunta: “Você deseja abrir ou gravar esse documento?”
Polícia privada online
O número de IPs fornecidos ao governo por dia deve atingir 150 mil até o final do ano. A rede será passada a pente fino para detectar os IPs que tiverem supostamente adquirido arquivos ilegalmente. Em seguida, eles são denunciados para a Hadopi, que aprova a lista e encaminha ao provedor o pedido de identificação dos dados pessoais (nome, endereço, telefone) ligados ao IP do usuário.
Primeiro, o usuário acusado de pirataria receberá um e-mail do governo; depois, recebe uma carta; e, numa terceira infração, um juiz decidirá se sua conexão será cortada. Os provedores de acesso são obrigados a cooperar, sob pena de pagarem multa de 1,5 mil euros por cada IP não fornecido.
“O governo confiou missões de polícia a entidades privadas. Eles irão vigiar o espaço público – a rede de compartilhamento de obras em sistema P2P (peer to peer) -, constatar infrações e coletar supostas provas. E, claro, farão isso com fins comerciais”, diz Jérémie Zimmermann, cofundador da ONG Quadrature du Net, de defesa dos direitos na internet.
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Franceses terão que recorrer a catálogos musicais pagos na internet para ficarem em dia com a lei
Incoerência
Para o ativista, estudos independentes provam que não há relação entre a queda da venda de discos e o compartilhamento de arquivos na internet.
“As pessoas que compartilham mais são as que gastam mais com entradas para concertos e cinemas”, diz, citando uma pesquisa realizada este ano pela Universidade de Amsterdã, na Holanda.
A Comissão Nacional da Informática e da Liberdade acrescenta que a criação de uma base de dados denuncia uma desproporcionalidade entre a proteção da vida privada, a coleta maciça de IPs, o corte do acesso à rede e o respeito dos direitos autorais. O Partido Pirata francês, inspirado em seu homólogo sueco, integra a militância pela livre circulação cultural-científica e lançou uma declaração dos direitos do internauta.
Já a Associação de Luta contra a Pirataria Audiovisual não mede esforços para filtrar a rede. Para a indústria fonográfica, a Hadopi teria acima de tudo uma missão pedagógica.
“Pode-se esperar uma diminuição significativa dos downloads ilícitos, a partir das primeiras mensagens do governo”, insiste a Sacem.
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Download de músicas e filmes protegidos, uma prática comum agora ilegal
Resistência
Soluções para driblar o rastreamento se multiplicam na net. O VPN (Virtual Private Network), tecnologia legal bastante utilizada em empresas, é a mais famosa delas. O serviço, pago ou gratuito, codifica os arquivos enviados em alta velocidade e fornece um novo IP em outro país, protegido da ação do governo francês.
Compartilhar arquivos anonimamente garante a tranquilidade do pirata profissional ou de final de semana. A lei não diferencia o usuário que baixou um arquivo ilegal uma vez ou milhares de vezes. A única distinção prevista é para os que comercializam esse material: três anos de prisão e multa de 300 mil euros.
“O mais prejudicado será o usuário médio, que não tem conhecimento técnico para usar os meios ‘alternativos’”, alerta um engenheiro da computação de 30 anos e heavy user de internet. “Ele retornará aos velhos hábitos: copiar em pen-drives, discos rígidos externos, DVDs e trocar isso sem passar pela internet”, revela.
Armadilha
Apesar de considerada ineficaz, a lei deve mudar o comportamento dos franceses que serão agora responsáveis pela segurança de suas próprias conexões internet. Os IPs rastreados estão ligados ao titular da conta, mas não necessariamente ao autor da infração.
“A maior parte das redes wi-fi não é bem protegida. Com programas disponíveis na web, é possível usar a rede do vizinho, da escola ou da prefeitura para baixar conteúdo ilícito, o que antes não havia necessidade de se fazer”, reforça o engenheiro.
Ele acredita na implantação de conteúdos de “armadilha” na rede, como um lançamento de sucesso, para “capturar” os “piratas”.
“Eles [o governo] vão tentar transformar em exemplo os que forem pegos, midiatizando as punições”, diz. “Como impedir os downloads se é evidente que nem todos podem arcam com entradas de cinema a 10 euros?”, questiona.
Questionamento
EUA, Inglaterra e Irlanda também realizam experiências de controle de downloads ilegais.
“A proposta francesa é de longe a mais extrema”, ressalta Zimmermann. Ele não acredita que a medida que classifica como “suicídio político” seja reproduzida em outros países.
Desde 2008, um acordo para controlar a falsificação vem sendo negociado entre a União Europeia e países como EUA e Canadá. O Anti-Counterfeiting Trade Agreement (em inglês, Acordo Comercial Antifalsificação) é acusado de violar processos democráticos, tentando censurar a rede. Ele foi alvo de uma declaração do Parlamento Europeu, no mês de março, convidando a tornar público o conteúdo de suas reuniões.
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