O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, finalizado e publicizado no mês de dezembro, foi considerado um avanço para o Brasil, que é tido como um país que lida mal com o passado de exceção. Tomando como exemplo outros países sul-americanos que foram governados por ditaduras militares, há um grupo considerável de brasileiros que defende a revogação da Lei da Anistia e a punição de agentes de Estado que cometeram crimes contra a humanidade.
Por outro lado, pouco ouvimos o que os nossos vizinhos têm a nos dizer sobre esse assunto. Será que os moradores do Chile, por exemplo, estão satisfeitos com a maneira com a qual o país resolveu as suas pendências com as barbaridades cometidas pelo governo Pinochet? A julgar por aquilo que mostra o documentário Nostalgia da Luz, em cartaz nos cinemas brasileiros, a resposta é um retumbante “não”.
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Divulgação
Documentário 'Nostalgia da Luz' tem como cenário deserto do Atacama para discutir busca por desaparecidos políticos da ditadura Pinochet
Patricio Guzmán, o diretor do filme, é um dos documentaristas mais celebrados do mundo atualmente, sendo a história e a política de seu país os temas principais de sua obra. Em A Batalha do Chile, longa-metragem dividido em três partes lançado nos anos 70, ele fez um minucioso trabalho que começa na ascensão do governo socialista de Salvador Allende e acaba no golpe que levou a ditadura de Augusto Pinochet ao poder, em 1973.
Assista ao trailer, em espanhol, do documentário 'Nostalgia da Luz' (2010):
Recentemente, A Batalha do Chile foi escolhido entre os 50 melhores documentários da história em uma votação entre críticos de cinema de todo o mundo comandada pelo British Film Institute. Embora bem mais recente, Nostalgia da Luz também entrou na lista, tornando Guzmán um dos poucos diretores com dois filmes nesta restrita seleção.
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Neste trabalho realizado em 2010, e que só agora chega ao nosso circuito comercial, o cineasta chileno selecionou o deserto do Atacama como palco para tecer relações improváveis, mas bem trabalhadas, entre astronomia, arqueologia, política e filosofia. Por causa do céu cristalino, o local foi escolhido para instalações de telescópios de última geração; devido às condições climáticas e ao alto grau de salinidade do solo, a conservação de restos de animais facilita o trabalho dos arqueólogos; na mesma terra, mulheres tentam encontrar os corpos de seus parentes que morreram nas prisões clandestinas que a ditadura Pinochet manteve no deserto.
As questões individuais, representadas por estas mulheres — que se assemelham na luta e na persistência às Mães da Praça de Maio da Argentina — são entrelaçadas com questões de escopo infinitamente maior, como a busca dos astrônomos por saber mais sobre a origem do universo.
Um cientista entrevistado no documentário diz que, em teoria, o tempo presente não existe, já que, mesmo no mais íntimo diálogo, o som do emissor chegará ao receptor algum tempo depois se isso for medido em milionésimos de segundos ou em uma escala ainda menor. É o interesse pelo passado, então, que vai guiar de diferentes formas as pessoas ouvidas em Nostalgia da Luz.
Como uma das mulheres que não se satisfaz com a descoberta de restos do pé de seu parente e diz que só se contentará quando conseguir encontrar e enterrar todo o restante do que sobrou dele, o filme não se prende àquilo que já foi dito sobre a ditadura Pinochet e vai a fundo para trazer novos elementos que expandam a memória do povo chileno.
Uma ressalva que pode ser feita é o excessivo número de inserções de falas em off do diretor. Clichês como o da “inocência da infância” seriam dispensáveis, e, em alguns momentos, Guzmán torna os seus paralelos literais demais (como no caso do uso recorrente da poeira estelar) ou confia pouco nas próprias imagens e parece querer direcionar em excesso a reflexão do espectador, o que cria uma amarra para o próprio filme.
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Em todo caso, Nostalgia da Luz é uma obra de um diretor importante que segue em plena atividade. No mais recente Festival de Berlim, ocorrido em fevereiro, Guzmán recebeu o prêmio de melhor roteiro pelo documentário El Botón de Nácar, que também reflete sobre a política chilena ao entrelaçar o território marinho do Chile, o extermínio de indígenas e os desaparecimentos políticos.
Aos brasileiros que querem conhecer ou que admiram o trabalho de Guzmán, resta torcer para que o esquecimento que ele tanto combate não se estenda novamente ao circuito de distribuição e exibição do país, e que este novo filme do cineasta chegue às salas de cinema em um tempo menor do que os cinco anos que nos separaram de Nostalgia da Luz.
* Adriano Garrett é editor do site Cine Festivais