Vera de Figueiredo, uma das cineastas mais importantes da história do cinema brasileiro, faleceu no último dia 8 de junho. A morte foi comunicada por sua filha, a atriz Ângela Figueiredo, através de suas redes sociais. Nascida em 1934 no Rio de Janeiro, completaria 90 anos no próximo mês. Cineasta, roteirista, arquiteta, designer e artista plástica, Vera seguiu atuando ativamente nas diversas áreas ao longo da vida.
Conhecida por uma filmografia feminista, Vera cresceu em uma família de mulheres pioneiras: a avó era sufragista e a mãe formou-se em farmácia nos anos 1930, quando o acesso das mulheres ao ensino superior era ainda bastante raro. A própria Vera se formou em arquitetura em 1957, em uma turma de sete mulheres e 100 homens. Foi nesse período de sua vida que tomou consciência da realidade de desigualdades entre homens e mulheres, aproximando-se então do movimento feminista, afirmou a cineasta em entrevista para a Cinemateca do MAM-RJ, em 2021.
Iniciou ainda nos anos 1960 suas primeiras experimentações com o formato Super-8, inserindo o audiovisual em suas instalações de artes visuais. Participou da equipe de arte do filme Garotas de Ipanema de Leon Hirszman (1967) e, em seguida, realizou seu primeiro filme, o curta-metragem Noites de Yemanjá (1972).
Em 1974, roteirizou e dirigiu, junto de Zózimo Bulbul, o curta documentário Artesanato do Samba, no qual já expunha um de seus grandes interesses pessoais: o carnaval. O tema retorna alguns anos depois em seu longa-metragem Samba da criação do mundo (1978), inspirado no livro Os Nàgô e a morte de Juana Elbein dos Santos, eleito o Melhor Filme do Festival de Veneza de 1984. Uma ópera-samba musical, narra a criação do mundo segundo a tradição Nagô a partir do desfile da Escola de Samba Beija-Flor.
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(Foto: Mulheres de Cinema – Leilany Fernandes/ Lygia Pape/ Vera de Figueiredo, 1977, acervo CTAv)
Sua obra cinematográfica mais conhecida, e que vem sendo recuperada nos últimos anos, é Feminino plural (1976)[1], um filme de vanguarda assumidamente feminista. Bastante ousado, o longa começa com um close de um parto, que chocou o público. Outra cena polêmica, esta censurada pela ditadura, mostrava um beijo entre um militar e um clérigo. Com péssima recepção no Brasil, a obra só conseguiu espaço de exibição à meia-noite das quintas-feiras, em quatro sessões. Sofreu também a recusa de ser enviada para representar o Brasil em festivais no exterior. Vera de Figueiredo conta, em entrevista dada em 1977, que diante das dificuldades, teve ela mesma que assumir a distribuição do próprio filme, enviando-o para o Festival de Cannes, no qual foi selecionado e exibido na Semaine de la Cinémathèque Française.
“Eu acho que meu filme é prematuro no brasil, é um filme que trata de um assunto que ainda está começando a ser ainda tocado. Há um preconceito muito grande contra esse assunto, mesmo as mulheres que já estão dentro das dificuldades, têm medo de dizerem que são feministas, têm medo de serem rejeitadas pela sociedade”, disse a cineasta sobre Feminino plural (1976).
No filme, sete mulheres motociclistas pegam a estrada rumo a uma casa no meio do mato. Lá, se reúnem a outras mulheres e crianças, formando uma comunidade em clima de ritual e festa. Com uma estrutura não linear, linguagem simbólica, performances inusitadas e planos incomuns, a força do feminino é resgatada a partir de vivências e experiências plurais de diferentes mulheres.
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(Foto: Reprodução)
Vera também participou ativamente da luta contra a discriminação das mulheres no cinema. A cineasta colaborou com o Coletivo de Mulheres de Cinema e Vídeo do Rio de Janeiro nos anos 1980, tendo contribuído para a elaboração do Manifesto das Cineastas. Entregue à Embrafilme em 1985, o documento dava sugestões ao novo ministro da Cultura, sobre temas como a produção, distribuição e exibição de filmes de mulheres; o treinamento da mão de obra de mulheres em vários setores da técnica cinematográfica; publicações, análises e pesquisas sobre o cinema feito por mulheres; e a garantia da presença de filmes feitos por mulheres em festivais, mostras e eventos.
Em entrevista para o jornal O Globo, em 29 de maio de 1985, a cineasta revela sua consciência da importância política e social de sua presença na realização fílmica e da constituição de um olhar contra-hegemônico: “Tenho medo de dar meus novos projetos para homens lerem. Os personagens femininos são muito fortes, tiram o poder do homem ao mesmo tempo que a mulher ganha consciência”.
Vera de Figueiredo parte deixando uma herança de contribuições para a história do cinema brasileiro, tanto na produção e representação das mulheres, quanto na proposição de inovações estéticas e poéticas. Seu legado não será esquecido e sua vida e obra podem ser mais conhecidas em alguns dos textos publicados no livro “Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro”, organizado por Karla Holanda e Mariana Cavalcanti Tedesco (2017), ou na entrevista bastante completa dada à Cinemateca do MAM-RJ em 2021, disponível em seu canal do Youtube.
FILMOGRAFIA:
1967 | Garotas de Ipanema (Figurino)
1972 | Noites de Yemanjá
1972 | Banda Ipanema
1973 | O que é arte?
1974 | Artesanato do Samba (roteiro e direção)
1976 | Feminino Plural (roteiro e direção)
1979 | Samba da criação do mundo (melhor filme Festival De Veneza, 1984)
1979 | O mestre sala
1992 | Amazônia como metáfora
1997 | Craque cultura