Poucas épocas na história da humanidade podem se gabar de concentrar a quantidade de acontecimentos que ocorreram e ainda ocorrem na idade contemporânea. Fruto da modernidade, eventos como a Revolução Francesa, e em especial, a Revolução Industrial, por exemplo, foram capazes de transformar o mundo de uma tal maneira que tanto historiadores quanto a humanidade em geral passaram a perceber o tempo como algo cada vez mais rápido, alcançando um ritmo alucinante de mudanças. Esses fatores foram essenciais para que a transição entre os séculos 18 e 20 fosse marcada por guerras, conflitos, invasões, e o surgimento de uma nova forma de colonialismo, que varreu o terceiro mundo – não sem o devido revide.
No século 20, em especial, o mundo alcançou um nível de contradições e mudanças nunca visto antes. Desde a Grande Guerra de 1914 até 1991, com a queda da União Soviética e o “fim da história” propagada pelo liberalismo, os anos 1900 marcaram para sempre a sociedade global. Uma época em especial foi decisiva para a forma como o mundo se projeta hoje: o pós-guerra, em 1945, colocou em xeque questões como o racismo, o colonialismo, o terror nazi-fascista, e viu o socialismo real e as democracias populares se estabelecerem em, ao menos, metade do globo. Isso não significou que o mundo se tornou um lugar melhor, pelo contrário; diversos países capitalistas se reinventaram, tanto nas formas de troca, como nas formas de opressão. Política e cultura se tornaram os assuntos do momento, é é isso que o documentário “1971: o ano em que a música mudou o mundo” nos apresenta com maestria.
O documentário, dirigido por Asif Kapadia, Danielle Peck e James Rogan, é um exemplo poético de como a luta de classes produz cultura, e como os artistas podem assumir papel de destaque no embate por um novo mundo. Desenvolvida em oito episódios, a série é simbólica por diversos motivos. A partir do clássico álbum What’s going on, de Marvin Gaye, o filme responde, a partir da relação da música e a luta política, o que está acontecendo no mundo, com foco em 1971, ano em que todos os discos analisados no documentário foram lançados.
Basta lembrar que os acontecimentos da década de 1970 são um produtos da intensa e sangrenta década de 1960 nos Estados Unidos. Assassinatos de revolucionários e ativistas negros e indígenas, o surgimento do Maoísmo Negro e do Movimento Hippie, e a famosa Rebelião de Stonewall, além da Guerra do Vietnã, são apenas alguns ingredientes que originaram a atmosfera criativa – banhada a pólvora, sintetizadores, gritos de revolução e ácido – que mudaria a música de massas norte-americana e britânica.
O filme explora as nuances da música de Gil Scott-Heron e Aretha Franklin, que, com o surgimento do Partido dos Panteras Negras e a popularização da palavra revolução, ganharam novos contornos, tornando o protesto negro ainda mais feroz. Nesse mesmo sentido, o movimento hippie, com suas contradições, se coloca em oposição à ocupação norte-americana no Vietnã, com os Beatles, e principalmente seu líder, John Lennon, assumindo a vanguarda do movimento pacifista contra a guerra, fazendo da sua música uma denúncia do imperialismo. Além de Lennon, Mick Jagger e os Rolling Stones passaram a questionar a normalidade e a hipócrita guerra às drogas, na onda do ácido que rapidamente se popularizou entre as camadas médias dos Estados Unidos, e, à sua forma, também questionavam o governo americano.
Lou Reed e Elton John decidiram, em suas obras, enfrentar a imposição da heteronormatividade, fazendo de suas músicas uma ferramenta de emancipação do movimento queer, ao lado de Carole King e Mitchell, que se levantaram contra o machismo na indústria musical e na sociedade americana. Ao mesmo tempo em que a luta aberta era travada por esse artistas, James Brown e Sly Stone desafiam os estereótipos racistas, e por meio dos sintetizadores, pianos e baixos, desenvolveram o funk, e inspirados pelo movimento Black Power, afirmavam: “I’m Black and I’m Proud!” (Sou negro e tenho orgulho!).
Por todos esses motivos, 1971: o ano em que a música mudou o mundo é indispensável como documento histórico e de análise da conjuntura de uma época em que o poder estava em intensa disputa no coração do capitalismo, onde as massas, assim como a música, não queriam nada menos do que mudar o mundo.
1971: o ano em que a música mudou o mundo
Lançamento: 2021
Direção: Asif Kapadia, Danielle Pech, James Rogan
Plataforma: AppleTV+