Não são apenas notícias relativas à atualização do modelo econômico, como o anúncio recente da unificação monetária, os únicos indícios de que Cuba já não é o mesmo país de antes. Um olhar mais atento sobre a atual produção cinematográfica cubana, em que são cada vez mais comuns os filmes realizados de maneira independente, revela a dificuldade de se levar adiante um projeto puramente estatal nos dias de hoje.
Uma ótima amostra do cinema independente cubano está na 37ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocupa cerca de 20 espaços da capital até o fim deste mês. É “Melaza”, o primeiro longa-metragem do diretor e roteirista Carlos Lechuga, formado pela Escuela Internacional de Cine de San Antonio de los Baños – reconhecido centro de formação de cineastas sediado em Cuba, mas que reúne gente de toda a América Latina e além.
“Melaza” conta a história de Mónica e Aldo, um jovem casal que batalha para salvar seu mundo sem perder a fé, enquanto o moinho de açúcar de sua cidade fecha as portas. Sem passar pelo financiamento do ICAIC, o instituto de cinema cubano, o projeto é uma coprodução entre Cuba, França e Panamá (5ta Avenida, ARTE France Cinema, 13 Production, Promenades Films e Jaguar Films), inteiramente filmado em Cuba – onde, segundo o diretor, o filme tem pouquíssimas chances de ser exibido em salas comerciais, apesar de ter viajado por importantes festivais, como os de Rotterdam, Toulouse e Miami.
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Imagem do filme “Melaza”, único representante cubano na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
“O instituto cubano, além representar o cinema do país, funciona como qualquer produtora. Ele tem diretores afins e faz com eles seus próprios filmes. Não há um concurso de projetos para ver a quem destinar o dinheiro. Há um orçamento para fomentar a produção que é interessante para eles e temas que priorizam”, explica Carlos. Por essa razão, em um mundo em que a produção de conteúdos – audiovisuais ou não – é cada vez mais intensa e tem grandes chances de conquistar diferentes públicos através da internet, jovens realizadores cubanos têm buscado meios alternativos de fazer filmes.
Para Alejandro Brugués, diretor do multi-premiado “Juan de los Muertos”, seu primeiro longa e o primeiro filme cubano de zumbis, a razão desse panorama que ele se recusa a chamar de “movimento” é básica. “O ICAIC, em primeiro lugar, tem uma capacidade limitada de produzir filmes a cada ano. Quem não quer ter que esperar sua vez é obrigado a buscar fontes alternativas de financiamento”.
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Essas fontes costumam ser fundos como o Ibermedia, disponível às coproduções entre países ibero-americanos, e o Cinergia, criado especialmente para a América Central, além de apoios estatais de outros países quando os filmes se nacionalizam através de uma coprodução. “Juan de los Muertos”, por exemplo, foi feito com a Espanha e do estado cubano recebeu somente a autorização institucional do ICAIC para ser coproduzido.
Brugués reforça que não se trata de um movimento organizado. “Ninguém está se reunindo para tentar mudar uma realidade. O fato é que muita gente hoje vive de cinema dentro ou fora de Cuba, não só dirigindo seus próprios filmes, mas trabalhando como técnicos de audiovisual. Essas pessoas precisam produzir”. Para ele, que ganhou um Goya em seu debut cinematográfico e está trabalhando em um novo projeto com apoio internacional, a questão não é mais se o governo cubano está aberto às mudanças, como se especula em tantos sentidos sobre Cuba. “A lei nacional de cinema tem mais de 50 anos. Desde que foi criada, foi o mundo que mudou”.
Por outro lado, existem, sim, divergências temáticas. Assuntos que podem ferir os valores do governo e levá-lo a pedir que certos filmes excluam a logomarca do ICAIC de seus créditos ou agradecimentos. Aconteceu com “Melaza”, de Lechuga. “Acho que muitas mudanças estão em processo, e as pessoas têm medo disso. Não é uma política que venha de cima, e sim alguma surpresa que não agradou. Suponho que achem que eu não trato a política com a mesma seriedade que trato os personagens. Mas esse é um diálogo que vai e volta, e pode ser que as coisas mudem”, diz o diretor.
Tanto Brugués como Lechuga esperam muitas novidades em um futuro próximo. A primeira delas é a separação das funções de instituto e de produtora do ICAIC. E então vem o debate sobre como produtoras independentes poderão passar a funcionar como empresas (e não mais através de pessoas físicas) no país. “Do jeito que as coisas estão, os independentes não podem competir. São no mínimo 50 anos de defasagem”. Mesmo assim, é inegável que eles aprendem rápido.