Este abaixo é, talvez, o texto mais perene sobre Jacques Chirac que escrevi quando fui correspondente em Paris da Folha de São Paulo. Ele, decididamente, não era meu personagem predileto.
Como presidente, Chirac podia vetar leis aprovadas no parlamento, onde não tinha a maioria. Uma delas foi essa, sobre o uso de línguas minoritárias na França, uma questão colocada por acordos europeus e por discussões sobre a diversidade linguística que avançavam nos anos 1990.
O impasse criado pelo veto de Chirac permanece: até hoje, a França não ratificou o acordo que assinou em 1992 e que entrou em vigor em diversos países a partir de 1998. Atualmente, são 25 os países europeus que ratificaram o acordo, entre eles a Alemanha, a Espanha, o Reino Unido e a Suécia.
Chirac vivia anos difíceis, era frequentemente acusado de corrupção e enfrentava uma situação que os franceses chamam de “coabitação”: presidente de uma tendência política minoritária no Parlamento, que nomeia um primeiro-ministro do grupo majoritário.
Representante da direita republicana francesa, Chirac fora, entre 1986 e 1998, primeiro-ministro de François Mitterrand, do Partido Socialista (PS). Entre 1993 e 1995, Mitterrand comandou a segunda coabitação, tendo Édouard Balladur como premiê.
A terceira coabitação foi mais longa: durou cinco anos, de 1997 a 2002. Desta vez, o presidente era da direita, e o primeiro-ministro, Lionel Jospin, membro do Partido Socialista e líder da chamada “Esquerda Plural”, comandava o governo. Em 1999, Jospin estava no auge de popularidade e era a estrela política francesa: o desemprego caia, a economia crescia.
Em 2002, no entanto, o PS de Jospin cometeria um erro político crasso: liberou todos os partidos do governo para que lançassem candidatos próprios, considerando que a ida de Jospin ao segundo turno das eleições presidenciais estava garantida.
Não estava: Jospin viu os seus aliados verdes, comunistas e centristas obterem votações respeitáveis, mas a fragmentação impediu que o PS pudesse disputar com Chirac a presidência.
Para o segundo turno, foram o ultradireitista Jean-Marie Le Pen e o presidente direitista Chirac. Jospin e o PS reconheceram o erro e a derrota, e decidiram apoiar Chirac no segundo turno contra Le Pen. Chirac, que cumpriu um mandato de sete anos, foi então reeleito presidente, desta vez para apenas mais cinco anos, após uma reforma política que encurtou o período presidencial – reduzindo, também, a chances de novas coabitações e fortalecendo, na prática, o poder do chefe de Estado francês.
Leia, a seguir, o texto anunciado lá em cima, publicado originalmente pela Folha de S.Paulo em 11 de julho de 1999:
Chirac veta uso de línguas regionais
Presidente cria problema político ao vetar uso de idiomas falados por minorias em administrações locais
A França é o país que mais resiste ao avanço da língua inglesa. Mas agora a questão político-cultural que o país enfrenta vem de idiomas menos universais – exatamente 75.
As chamadas línguas regionais viraram problema político após o veto do presidente Jacques Chirac à ratificação da Carta Europeia de Línguas Minoritárias. Amparado por uma decisão do Conselho Constitucional, Chirac argumentou que a carta feria alguns artigos da Constituição. Os dois artigos seriam o 1º, que garante a igualdade dos cidadãos perante a lei, independentemente de origem, e o 2º, que diz que a língua oficial do Estado é o francês.
A carta, de 1992, prevê o estímulo ao ensino das línguas regionais e ao uso dessas línguas nas administrações locais. Para o Conselho Constitucional, a carta cria direitos específicos aos falantes dos idiomas regionais, eliminando a igualdade.
A pedido do primeiro-ministro Lionel Jospin, o linguista Bernard Cerquiglini, do Instituto Nacional da Língua Francesa, elaborou uma lista das línguas em questão.
Feitas as contas, Cerquiglini chegou à conclusão de que a França fala (ou pelo menos utiliza na forma escrita) 75 línguas diferentes, que poderiam ser protegidas pelo acordo.
Na lista, estão idiomas como catalão, basco, corso e creoles (diferentes idiomas de habitantes das colônias francesas), falados por etnias que formam a maioria da população em algumas áreas, e idiomas como árabe, iídiche e berbere, usados por grupos de imigrantes.
Há línguas que não são nem mais faladas. Segundo Cerquiglini, elas são, em geral, as “primas” do francês, como o normando, conhecido na forma escrita por moradores da Normandia, no norte do país.
Ficam de fora idiomas de imigração recente, não protegidos pela carta – entre eles o português, que começou a chegar à França quando Portugal vivia sob a ditadura salazarista.
Tanto Chirac quanto Jospin têm aliados importantes que acham que a carta põe a unidade francesa em perigo.
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Jacques Chirac, ex-presidente da França, morreu aos 86 anos
Movimentos nacionalistas como o corso e o basco utilizam a defesa da língua local como um dos motes de sua atuação.
A posição é forte dentro do RPR (Reunião pela República) de Chirac e no MDC (Movimento dos Cidadãos), partido do ministro do Interior de Jospin, Jean-Pierre Chevnement.
Chirac tem um problema adicional. Outro defensor da “unidade francesa” é Charles Pasqua, ex-membro do RPR e recém-fundador do RPF (Reunião pela França), que dividiu o eleitorado de direita do país.
Ao mesmo tempo, tanto o presidente quanto o primeiro ministro contam nos seus arcos de alianças com defensores de medidas protetoras dessas línguas. Para evitar problemas, Jospin, que levou a questão adiante, e Chirac, que vetou, passaram a adotar posições intermediárias.
Jospin disse que havia feito tudo o que podia e sugeriu que Chirac propusesse uma mudança constitucional em outro artigo, facilitando a ratificação do tratado.
O presidente, em viagem pelo interior, sugeriu nesta semana que a França adote uma legislação que garanta a adoção dos pontos do tratado sem ferir a Constituição, jogando o problema de volta para Jospin.
A solução deve vir do Parlamento. Deputados socialistas e da UDF (União Democrática Francesa) devem voltar das férias de verão com projetos de lei para pôr em prática o conteúdo da carta europeia. Vão ter de discutir bastante, até que todos falem a mesma língua.
Linguista defende a pluralidade
Para o linguista Bernard Cerquiglini, que organizou a lista de 75 línguas faladas na França, o que está em jogo é a defesa de um patrimônio cultural.
“Preservamos prédios, por que não as línguas?”, disse à Folha. O levantamento foi feito num período de três meses, com a ajuda de outros linguistas, depois do pedido de Lionel Jospin, em dezembro do ano passado.
Segundo ele, o temor de que a Carta européia venha a pôr em risco a unidade da França não é justificável.
“Hoje, todos os franceses falam francês. O que não os impede de praticar o bilinguismo. Para a República, é importante que o cidadão fale pelo menos o francês, e não que ele fale apenas o francês”, enfatiza.
O trabalho indica apenas as línguas faladas na França.
Entre as línguas regionais que conhecem maior desenvolvimento, ele cita o catalão. “Do outro lado da fronteira, na Espanha, todos falam a língua. As placas das ruas são bilíngues, há jornais no idioma regional. A população catalã francesa tende a adotar a língua regional de forma crescente”, disse ele.
Em áreas como os Pirineus Orientais, o País Basco francês e a Córsega, há escolas que ensinam a língua regional desde o processo de alfabetização. (HCS)
Idiomas regionais perdem terreno
As línguas regionais francesas, de um modo geral, vivem um decréscimo na proporção de falantes. O caso da Córsega, onde cerca de 100 mil a 150 mil pessoas numa população de 250 mil falam o corso, é um exemplo.
Antes da independência das colônias da África, quase todos os habitantes da ilha usavam o idioma. Com a vinda de imigrantes, o corso perdeu terreno para o francês. Desde 1982, a França adota política de ampliação da autonomia da ilha devido ao nacionalismo, mas o francês ainda é utilizado no trabalho e formalmente.
Para Cerquiglini, é natural a ligação entre o nacionalismo e a língua: “Os idiomas são fenômenos sociais que se cruzam com o problema da definição da identidade coletiva. A identidade, em geral, se dá em torno da língua”.