“No espelho do poder se reflete um novo personagem, ainda que esteja de perfil e às vezes embaçado”. Isso eu escrevi há um ano, no segundo aniversário do 15M. E terminava assim o artigo: “Cada vez que repetem que o 15M murchou, se colocam como pais e mães da pátria caducos. E as telas de plasma de onde falam são o espelho da bruxa da Branca de Neve [encobre a velhice de quem manda nele]. O tripé que sempre sustentou esse espelho tem sido os meios de comunicação, as pesquisas e as urnas. O espelho da bruxa se racha. E, como Alice , o 15M fala conosco do outro lado do espelho”.
Agência Efe (arquivo)
Após 3 anos de indignação, 15M deixou legado na Espanha
O espelho tinha feito “crac”, cantava Nacho Vegas . Um ano depois, o 15M passou para o outro lado. Foi de espectador a protagonista do panorama político. Como se cada ano de sua vida tivesse sido uma década, evoluiu tão rápido que não é possível reconhecê-lo. Não o veem aqueles que ainda o buscam acampando em praças ou fazendo piquetes nas assembleias ao sol. Querem ratificar que o 15M sempre foi uma revolução de boyscouts feita de ar, de fumaça que seria levada ao vento. Não entenderam que antes de seu primeiro aniversário fez uso da razão, da cidadania de alta intensidade, exigiu o direito de opinar e de participar. Como o faz alguém já crescidinho: sem permissão.
Em seu segundo ano de existência, os indignados intervieram onde se espera quando se cumpre 20 anos: nos direitos sociais e trabalhistas. As marés transbordaram o sindicalismo oficial, enquanto as pesquisas anunciavam o fim do bipartidarismo do Regime de 78. O 15M tinha criado um novo espaço público, ao mesmo tempo de contestação e de consenso. Segunda todas as pesquisas (CIS, Metroscopia…) 2 em cada 3 ou 3 em cada 4 espanhóis apoiavam suas demandas e/ou estratégias. O faziam com uma transversalidade imprevista, sem apenas diferenças de idade, sexo, situação trabalhista e tamanho da população. Um clara maioria apoiava o cerco ao Congresso e os escrachos da Plataforma dos Afetados por Hipotecas; com uma intensidade e persistência desconhecidas em outros movimentos de indignados. Agora, se expressam pelo voto indeciso e pelos novos partidos que se apresentam para as eleições europeias.
O 15M, em seu terceiro ano de vida, não será o personagem central do retrato do poder que surgirá depois de 25 de maio. Mas está presente nos meios de comunicação e nas pesquisas. E estará presente nas urnas. Aqueles que três anos antes o acusavam de antipolítico, de se desafazer da democracia que nos tinham presenteado, já não se atrevem a usar o pseudo-argumento. Vimos seus dentes.
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Houve milhares, centenas de milhares de atos e gestos, individuais e coletivos, que se transformaram em ações democráticas. Se estenderam dando tintas de impugnação ao duopólio eleitoral. A desobediência civil não violenta ao aparato político, policial e judicial transformou a PAH e as marés em ícones do 15M. E o revelam, sobretudo, como um espaço gerador de novas ferramentas de protesto e intervenção. Transformam os afetados pela crise em sujeitos políticos autônomos: interpelam as instituições com suas regras, ao mesmo tempo em que as questionam e propõem outras novas.
Ao 15M, ainda recém-nascido, pediam propostas, em vez de protestos. [Ele] as fez. E o Parlamento desvalorizou a ILP [iniciativa legislativa popular] sobre habitação até reverter seus objetivos contra seus promotores. A PAH fez da ocupação uma via para criar moradia. Desalojaram-na a pauladas e multas. O 15M ainda não tinha nem dentes de leite, e também lhe pediam que se candidatasse às eleições. Agora que o faz com partidos próprios, capaz de morder o bolo eleitoral, o tornam invisível. As projeções de voto, pré-cozidas, cheiram mal. Não escondem o fedor do antigo Regime: a enorme reprovação de seus líderes e aparatos. Questionem as pesquisas que publicam ou, melhor dito, propagandeiam os meios de comunicação do passado, ainda hegemônicos. Comparem-nas com as de outros, que se sentem parte e voz do 15M.
Do acampamento à campanha eleitoral
Em três anos — insisto, pareceriam trinta —, a multidão acampada nas praças faz campanha. O ao menos é isso que percebo nas salas de aula. Aquele “Não vote neles” — contra a Lei Sinde [lei antipirataria espanhola] — tem um signifado maior: geracional. Um jovem estudante propunha há meses realizar cartéis conjuntos para os novos partidos do 15M: “Pais, avós, façam isso por mim. Não votem neles”. Não era necessário, segundo ele, incluir nada mais. Todo mundo entenderia quem representa o passado. Quem lhes oferece empregos péssimos ou exílio económico. Hipotecas ou despejos. Silêncio ou multa. Cenouras podres ou varas uniformizadas , na rua e na internet.
WikiCommons
Dado o primeiro passo (descartar o passado como futuro intolerável), outro companheiros propunham, positivamente, “lançar o voto à sorte”. Se em 2011 “não sabíamos nada” de partidos, agora duvidavam entre apoiar quatro ou cinco formações. Já que não foram capazes de se apresentar unidas, propunham que a sorte decidissem entre as mais afins. Note-se que os alunos dão soluções antes impensáveis. Primeiro, colaborar com uma rede de novos partidos, sem distinção, para acabar com o que percebem como a rede clientelista do PPSOE (Partido Socialista Operário Espanhol). Em segundo lugar, a eleição por sorte, a decisão mais democrática: dar idênticas oportunidades aqueles que se considera igualmente capazes de nos representar.
Não tinham dúvidas suficientes para identificá-los. As candidaturas do 15M propuseram — algumas com grande profundidade — a democracia direta e digital. Desenvolveram eleições primárias para eleger suas listas eleitorais, mobilizando recursos e participantes que supõem ser um marco em comparação ao nosso entorno. O Partido X aplicou a tecnopolítica mais avançada, sem comparação. Nenhum partido pirata nem o Beppe Grillo (comediante, blogueiro e político italiano que fundou o Movimento 5 Estrelas) elaboraram seu programa a partir de baixo, e, sobretudo, do zero. Deve ser a primeira formação que apresenta às eleições da União Europeia um candidato estrangeiro. Seu cabeça de lista é um hacker estrangeiro que quase colocou Emilo Botín, banqueiro espanhol, presidente mundial do Santander, na cadeia. Representaria o segmento votante do 15M mais poderoso na rede: pragmáticos e sem fronteiras. Seu homólogo é o mais ideológico e socializado na esquerda, o Podemos, que recolheu o legado do altermundismo latino-americano, cujos governos assessoram vários de seus líderes. Organizaram círculos de apoio com o modelo das mobilizações cidadãs que elegeram governantes populistas (de Chávez a Lula, passando por Evo, Correa e os Kirchner). Em poucos meses, o partido de Pablo Iglesias aparece nas previsões de cadeiras. Propõe mudanças estruturais, compatíveis com processos eleitorais e de mobilização cívica. Recorre ao populismo como ingrediente de uma cultura política capaz de substituir o (não menos populista) individualismo do capitalismo.
Os partidos Equo e IU também apareciam renovados para o corpo discente. Consideravam votar em suas plataformas com outros partidos: respectivamente, a Primavera Europeia e Esquerda Plural. Por ter se envolvido com as resistências e mobilizações sociais. Por aplicar mecanismos (se bem que desiguais) de participação e transparência interna. Estas eram as quatro opções que os alunos de Madri consideravam. Companheiros das regiões de Galícia, País Basco e Catalunha talvez tivessem incluído a coligação “Os Povos Decidem” (Bloco Nacionalista Galego / Bildu). Cinco opções para decidir na sorte. Somente faltava um rosto no dado sem siglas. Um curinga? Exatamente. Outra sigla nova, mas um remedo das que pediam que os pais e os avós não votassem. Não: melhor jogar de novo o dado. Até que saia qualquer das que, na próxima eleição, deveria apresentar candidaturas e cartazes conjuntos.
Nada disso tira nem um pouco de valor do 15M que não reconhece o jogo partidário nem a representação parlamentar como manifestações de uma maioria de idade política. Seus porta-vozes e ativistas mais cabais, partidários de se abster ou votar nulo, merecem a maior estima e o agradecimento. Sua coerência e entrega são louváveis. Entenda-as bem. Propunham a abstenção ativa, precedida e seguida de compromisso e militância. Não anularão somente os papéis de votação (tachando, por exemplo, os nomes dos corruptos), mas a existência de um poder sem contrapoder.
Votar ou ocupar uma cadeira no Congresso não faz de ninguém melhor ou pior sujeito político. Nem do 15M. Fazer aniversários também não. Mas a idade traz certo cansaço e o desejo de materializar alguma mudança, sem confiá-lo a um futuro que se percebe cada vez mais curto. Não é covardia, mas pragmatismo. Isso não dizem os estudantes de 20 anos, mas muitos yayoflautas — idosos que, em muitas cidades da Espanha, se organizam para lutar pelos direitos de seus filhos e filhas, netos e netas.. Perguntem a eles se vão ou não votar. Teria sido tão oportuno que alguma candidatura do 15M os tivesse incluído! Tudo irá em frente. Lembrem-se, vamos longe. O tempo joga a favor. Segue minando o caduco, trará novas mobilizações e eleições.