Há 30 anos entrava em circulação o Real, a moeda até hoje utilizada no Brasil, após um período conturbado para a política econômica nacional, onde quatro outras moedas haviam sido operacionalizadas em período de pouco mais de oito anos, sem atingir qualquer sucesso no controle da hiperinflação que assolava o país.
Embora atribua-se ao Plano Real os méritos da contenção do processo de escalada extrema dos preços, o fato é que tal plano não teve como único objetivo a estabilização monetária, mas principalmente buscou alinhar o Brasil aos princípios do Consenso de Washington. A intenção era inserir o país rapidamente na globalização financeira e comercial, atendendo aos interesses externos e das elites econômicas internas. O Plano Real não se limitou a combater a inflação, mas instaurou também um modelo de desenvolvimento neoliberal no Brasil.
A estabilização monetária teve alto custo social e econômico. A adoção de juros extremamente altos (que ainda persistem) fez com que o Estado gastasse enormes quantias no pagamento da dívida, moldando uma economia baseada em rendimentos, com grande concentração de renda. O câmbio valorizado por um longo período interrompeu o progresso da indústria brasileira e tornou o país mais dependente e vulnerável aos fluxos especulativos do capital internacional. O governo ignorou alertas sobre o desequilíbrio e o aumento do passivo externo, acreditando erroneamente no “crescimento com poupança externa”, como se a entrada de capitais automaticamente trouxesse melhorias na produtividade. A dívida pública aumentou e se dolarizou. Além disso, o Plano Real preparou o terreno para outras medidas que consolidaram um Estado neoliberal: privatizações, Lei de Responsabilidade Fiscal, Sistema de Metas de Inflação e Tripé Macroeconômico (superávit primário, câmbio flutuante e meta de inflação).
Importante também destacar, que institucionalmente, a origem do Plano Real coincide com a edição da Medida Provisória nº 542, de 30 de junho de 1994. A MP 542 foi reeditada e alterada diversas vezes, até ser formalmente convertida na Lei nº 9.069, de 29 de junho de 1995, que “dispõe sobre o Plano Real, o Sistema Monetário Nacional, estabelece as regras e condições de emissão do Real e os critérios para conversão das obrigações para o Real, e dá outras providências”. Entre os vários instrumentos que apoiaram sua execução ao longo dessas três décadas, destacam-se a Desvinculação de Receitas da União (DRU) e o Sistema de Metas de Inflação (SMI).
O Sistema de Metas de Inflação foi estabelecido pelo Decreto 3.088, de 21 de junho de 1999, e tem se mantido relativamente estável por 25 anos, sem grandes alterações. Mesmo após a promulgação da Lei Complementar 179, de 24 de fevereiro de 2021, que modificou significativamente o regime jurídico do Banco Central, não houve mudanças substanciais no Decreto 3.088. Com a nova lei, a autoridade monetária passou a ter mandatos fixos para seus dirigentes, permitindo que, além de perseguir as metas de inflação, também tivesse o dever institucional de “zelar pela estabilidade e eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego”, conforme o parágrafo único do artigo 1º da LC 179/2021. Embora a institucionalidade do Sistema de Metas de Inflação pareça estável, ela apresenta lacunas significativas. A condução da política monetária no Brasil tem gerado impactos sociais, econômicos e fiscais severos, que demandam um debate mais aprofundado e melhorias ao longo do tempo. Há uma falta de reflexão sobre como aprimorar o processo de definição da política monetária, particularmente em relação ao manejo da taxa básica de juros pelo Banco Central, que visa manter a inflação dentro dos limites estabelecidos pelo Conselho Monetário Nacional, mas distantes das necessidades sociais.
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Justamente ao contrário do que ocorre com a DRU. A desvinculação de receitas, originalmente concebida como Fundo Social de Emergência (FSE), passou por sucessivas renomeações, para Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e, posteriormente, Desvinculação de Receitas da União (DRU). Essa prática foi estendida a estados e municípios, resultando na tríade DRU (Desvinculação de Receitas da União), DRE (Desvinculação de Receitas dos Estados) e DRM (Desvinculação de Receitas dos Municípios). O Fundo Social de Emergência (FSE) foi criado pela Emenda Constitucional de Revisão nº 1, em 1º de março de 1994, para vigorar até 1995, com o objetivo de estabilizar a economia e sanear financeiramente a Fazenda Pública Federal.
A princípio, os recursos parcialmente desvinculados seriam destinados ao custeio de ações nos sistemas de saúde e educação, benefícios previdenciários, auxílios assistenciais de prestação continuada, liquidação de passivos previdenciários e outros programas de relevante interesse econômico e social. Desde a sua criação, foram realizadas doze Emendas Constitucionais que trataram direta ou indiretamente da desvinculação de receitas, prevendo, renomeando, ampliando e, principalmente, prorrogando-a. Recentemente, começou a ser considerada a 13ª emenda constitucional sobre a desvinculação de receitas, já que o governo federal busca alternativas de ajuste fiscal que evitem a necessidade de uma revisão imediata da Lei Complementar 200/2023 (Novo Arcabouço Fiscal) já em 2025. A ideia é estender os efeitos da DRU sobre os pisos da saúde e educação. Contudo, existe uma clara contradição no discurso de que as vinculações prejudicam a eficiência e a eficácia na prestação de serviços sociais básicos. Isso porque essas vinculações, destinadas à seguridade social e ao percentual mínimo de gastos em saúde e educação, foram aprovadas pelo Congresso com o objetivo oposto.
As comemorações entusiásticas dos 30 anos do Plano Real, na verdade, disfarçam a defesa do projeto neoliberal. Embora o plano tenha eliminado a inflação e estabelecido a soberania monetária, ele também destruiu a indústria nacional e criou uma economia baseada no rentismo improdutivo, sustentada por uma taxa de juros permanentemente alta. Esse cenário formou as bases do neoliberalismo no Brasil. Neste aniversário de 30 anos do Plano Real, é crucial desvendar esse complexo cenário como ponto de partida e um dever de equidade. Isso é necessário tanto para corrigir os rumos do plano quanto para assegurar sua sustentabilidade e legitimidade para as próximas décadas. Somente ao enfrentar esses desafios será possível ajustar e melhorar o impacto econômico e social do Plano Real, garantindo um desenvolvimento mais justo e equilibrado para o futuro do país.
(*) Bianca Valoski é doutoranda no Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas da UFPR, dentro da linha de pesquisa em Economia Política do Estado Nacional e da Governança Global. É servidora da Câmara Municipal de São José dos Pinhais, onde trabalha com finanças públicas.