Tinha programando-me para falar sobre os trabalhadores da saúde nesta semana. Mas veio a roda da vida e trouxe um assunto diferente para discutir com vocês.
O tema é a relação entre os Poderes Executivo e Legislativo em cidades pequenas como Conde. Desde sempre, a relação é conturbada e delicada. De acordo com o artigo 31 da Constituição Federal brasileira, a fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, na forma da lei. O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas do Estado, nesse caso. Não há previsão na Constituição Federal para atuação ativa física individual de um parlamentar, sendo certo que a forma da lei citada na Constituição para o ato de fiscalizar remete a órgãos coletivos, como o Tribunal de Contas, órgão auxiliar das Câmaras Legislativas, ou, na forma do artigo 4º, inciso II do Decreto Federal n.º 201/67, às Comissões de investigação da Câmara Municipal regularmente instituídas.
Mesmo sem adentrar no que diz a lei, é importante aqui fazer raciocínios lógicos e civilizados sobre o poder de fiscalizar. Mesmo sendo serviços públicos, o poder de fiscalizar não pode ser exercido de forma autoritária e arbitrária, no momento e na hora em que um Parlamentar achar possível. Vamos a um exemplo: imagine que um médico está realizando uma consulta médica e um vereador resolve fazer fiscalização ao serviço no qual ele está trabalhando. Ele não pode abrir a porta e adentrar na sala. O mesmo se refere a uma escola pública, na qual aulas estejam sendo dadas. Não é plausível que o Parlamentar adentre na aula e assista a aula. Para todos esses casos, a comunicação prévia e formal é necessária, além de outros procedimentos previstos na lei, como citados acima, a existência de Comissões prévias constituídas pelas Câmaras Municipais. Isso porque o papel de fiscalizar não significa o de investigar, fazer flagrantes. Esse papel cabe a outras instituições, à polícia e ao Ministério Público, sempre com a autorização expressa e prévia do Poder Judiciário, que é o órgão que assegura os direitos da parte acusadora e da parte acusada, mantendo a imparcialidade da investigação.
Percebam que a fiscalização não é investigação. Ela é o ato de avaliação, que até pode tornar-se numa investigação diante das situações detectadas no exercício da fiscalização.
Feitas essas ponderações, fica fácil para qualquer cidadã e cidadão avaliar a situação pela qual a gestão da Secretaria da Saúde da Prefeitura de Conde passou nesta semana, sem precisar de análises mais profundas.
Nesta quarta-feira, logo cedo, fui surpreendida por telefonemas de funcionários de que um vereador da oposição queria fiscalizar a Farmácia pública da Secretaria de Saúde da Prefeitura de Conde. Pedi que eles dissessem a ele para me esperar chegar para que isso fosse avaliado por mim, mas quando cheguei, ele já estava dentro da Farmácia com um dito assessor. Logo que cheguei, conversei com o vereador e informei que ele tinha o direito de fiscalizar a farmácia sim, mas não da forma que estava pretendendo: aparecendo ao serviço público sem comunicação prévia e formal e sem cumprir os requisitos legais. Na Administração Pública, todo mundo sabe que a formalização é pré-condição para tudo. Pois bem, ele insistiu na prática, eu insisti na negação da fiscalização daquela forma pretendida por ele e reforcei minha autoridade sanitária nesse sentido. Enquanto conversávamos, um suposto assessor dele, sem qualquer identificação como tal, filmava tudo e ficava fazendo-me provocações. Passei a filmar também o evento, para meu próprio resguardo. O vereador dizia que estávamos entregando medicamentos vencidos à população, segurava uma cartela com 5 comprimidos na mão, mas não apresentava o nome de quem os recebeu, a receita médica de quem havia prescrito nem a data em que isso aconteceu, muito menos em que serviço de saúde municipal isso tinha supostamente acontecido.
Diante de minha negativa em deixá-lo realizar a fiscalização, ele resolveu chamar a polícia, que ao chegar, não quis se contrapor ao vereador e nem a mim. Mas como é possível se contrapor a direitos que são antitéticos: vou fiscalizar e não pode fiscalizar dessa forma? O fato é que, sendo mulher e pacifista, não me dispus a ir para o enfrentamento violento com tantas autoridades não me dando resguardo, e muito provavelmente essas condições foram as razões pelas quais a ação arbitrária do Vereador foi autorizada.
Parecia tudo combinado previamente. A dúvida da polícia em nenhum momento resultou numa paralisação da ação do vereador. Meu argumento de que a forma estava equivocada também não foi checado. Com base no senso comum, numa ligação a um superior, decidiu-se por dar guarida à atitude arbitrária do vereador na medida em que ela não foi impedida. Está aqui a chave do autoritarismo que vivemos neste país: na dúvida, a arbitrariedade está protegida, e não o inverso.
Eu, como responsável pelo serviço de saúde em questão, já que Secretária de Saúde, fui preterida por um vereador que agiu de forma arbitrária. Não precisava muito conhecimento para saber que aquele ato era ilegal na sua forma, porque baseado na desarmonia. A Constituição Federal preconiza a independência e a harmonia entre poderes no seu artigo 2º, e esse princípio não foi respeitado no que tange ao Poder Executivo de Conde.
Durante esse ato arbitrário, o vereador encontrou medicamentos vencidos, e com isso fez vídeos e ilações de que aquela era a prova de que estávamos entregando medicamentos fora da validade. Obviamente que o fato de existir medicamentos vencidos não significava que eles seriam distribuídos, principalmente porque estavam separados para coleta e descarte por empresa contratada para tal ação. Mas ele fez o que queria fazer, em completo desrespeito às normas e violação à minha autoridade sanitária, já que jamais pensei em impedir esse ato de outras formas, que não as legalmente possíveis.
Após o ocorrido, surgiram nas redes sociais vários vídeos que me expõem enquanto figura pública, sem minha autorização. Minha imagem foi veiculada sem minha anuência. Importante dizer que tenho vídeos também dessas cenas, mas não os veiculei. Ela são minhas provas de que não autorizei o ato e que o vereador deve responder pela ilegalidade cometida, e serão usados na forma da lei nas oportunidades possíveis.
Ainda pela manhã, o Delegado de Polícia esteve na Farmácia e apreendeu os medicamentos vencidos sem qualquer mandado judicial, que repito, estavam separados para descarte e incineração. Ele disse ter recebido uma ligação da promotora da cidade, aquela mesma que ajuizou ação civil pública para impedir as barreiras sanitárias restritivas de acesso em Conde e foi vencida, com pedido de busca e apreensão. Nada formalizado, tudo de boca! Não houve flagrante algum, porque inexistiu crime.
Importante dizer que não é crime ter medicamentos vencidos na farmácia pública nem nas privadas. A política de saúde é imprevisível, como a própria pandemia da covid-19 nos demonstra, e faltar ou sobrar medicamentos faz parte da difícil tarefa de planejamento nesse âmbito. Portanto, a ação das demais autoridades envolvidas demonstra mais uma vez a fragilidade e vulnerabilidade em que estamos enquanto gestores públicos.
No meio de uma pandemia e de uma crise sanitária, temos o trabalho diário desfocado para atuações ilegais, que nos tiram tempo e energia para planejar novas ações nesse enfrentamento.
O que importa dizer, todavia, é que a situação da covid-19 em Conde está controlada. Temos mais de 100 casos confirmados, tivemos 2 mortes indesejadas de pessoas que farão falta na sociedade de Conde, temos conseguido evitar internações com os cuidados de nossos profissionais de saúde, principalmente os das Unidades Básicas de Saúde e do Pronto Atendimento da cidade, além do trabalho contínuo da Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Saúde. Dentre as cidades da Grande João Pessoa, Conde tem tido números menores proporcionalmente em relação à pandemia, que indicam que as barreiras sanitárias restritivas de acesso foram atitude corajosa e acertada da prefeita Márcia Lucena, que diminuiu a transmissão do novo coronavírus na cidade, juntamente com as demais ações da Prefeitura.
O cenário é opressor, deixa-nos vulnerável, mas coragem é o que não nos falta para prosseguir nessa luta contra a covid-19 e contra o autoritarismo.
(*) Renata Martins Domingos é secretária de Saúde da Prefeitura de Conde, na Paraíba.
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