Em 13 de abril de 2024, o Irã atacou massivamente o Estado sionista em uma retaliação ao bombardeamento com vítimas à sua sede consular em Damasco. O ataque produziu efeitos simbólicos, uma espécie de “efeito demonstração” (por não ter atingido propositadamente áreas sensíveis entre a população civil e a atividade econômica), alcançando substantivamente apenas a base aérea no deserto de Neguev, instalação de onde partiram os aviões F-35 que atacaram a sede consular iraniana.
No dia 19 de abril o Estado sionista atacou o Irã, mas em intensidade bem inferior, se compararmos o número de drones e mísseis que percorreram os céus dos países vizinhos na semana anterior. Não há consenso entre os especialistas reportados na mídia sobre quais ou quantos armamentos foram lançados em direção ao país persa, mas é certo que a simbologia do ataque foi estabelecida ao dirigir parte destes para as imediações das instalações nucleares localizadas na cidade de Isfahan.
Dentro deste quadro de duplo ataque o que resta a considerar é a formação de uma nova equação de poder (militar) no Oriente Médio. Que o Estado de Israel tenha capacidade de externalizar poder é coisa sabida e estabelecida. O que é novo, o que foi demonstrado cabalmente no primeiro ataque, é que o espaço aéreo do Estado sionista também é poroso, vulnerável e suscetível; é possível impor ao Estado sionista uma posição pouco praticada por esta instituição (ao menos desde a Guerra do Yom Kipur, em 1973): a adoção de medidas defensivas no seu território contra hostilidades oriundas do exterior. Aqui é a ação iraniana que realmente precisa ser considerada nesta nova correlação de forças; esta situação foi ensejada pela exposição do território sionista a um arsenal de cerca de três centenas de armas de longo alcance (drones e mísseis), o que denuncia a existência de um estoque maior e mais poderoso em poder das forças armadas persas.
Dada a distância de cerca de mil quilômetros entre as duas fronteiras, as opções de conflito quase que se restringem a este tipo de armas. Também podem ser alvos os proxies iranianos que atuam mais próximos das fronteiras. Por seu turno, estes mesmos possuem armamento análogos (se bem que menos potentes) aos dos iranianos, e também podem atingir o território ocupado pelos sionistas. Estas armas atingiriam o alvo com menor tempo de voo e, certamente, com mais precisão. Se não tiverem o intento explícito da destruição, o lançamento destas unidades sobre o território sionista produzirá o efeito de saturamento dos equipamentos de interceptação da defesa (principalmente o “domo de ferro”), o que daria aos mísseis e drones lançados do território iraniano maior poder de destruição, já que contariam com uma melhor oportunidade de atingir o seu alvo sem a interceptação do inimigo.
No ataque iraniano o Estado de Israel contou com o suporte de aliados regionais, a Jordânia e a Arábia Saudita, que participaram da “batalha aérea” de abater manualmente o que foi lançado pelo Irã. Vieram estas duas forças aéreas a complementar o suporte basilar dos EUA e Inglaterra, transformadas numa espécie de “proxies de luxo” do Estado sionista.
Uma ofensiva israelense sobre o Irã é mais complexa do que o contrário. Tal fato ficou muito claro durante a Guerra Irã x Iraque (1980-1988), na qual o alcance dos principais centros nevrálgicos do poder iraniano (político e econômico) tornaram-se componentes cruciais na sua defesa. Eles estão localizados no oriente do país, o que imporia uma percurso ainda maior de voo de drones e mísseis lançados pelo Estado sionista. Este, por seu turno, pelo seu tamanho reduzido (tanto longitudinalmente quanto latitudinalmente), e concentrando sua produção econômica e poderio militar e político em curtas distâncias uns dos outros, está infinitamente mais vulnerável ao efeito que uma arma de forte impacto numa região causar a uma área vital próxima ou distante, cessando ou limitando severamente o fornecimento do bem ou serviço a que esta estava destinada. Além disso, o imenso território iraniano permite que o lançamento das armas possa ocorrer de variados pontos, o que dificulta a identificação da trajetória inicial.
Mas o que realmente deve ser considerado neste intricado episódio é que a mútua agressão foi causada pelo Estado sionista, que está buscando agendar perenemente um conflito armado com o Irã. A convicção desta entidade é de que, eventualmente iniciada a guerra, automaticamente seriam agregadas ao seu redor forças materiais e políticas para (na eventual derrota ou fragilização do Irã) contribuir para produzir a pax israelensis[1].
Neste caminho devemos considerar em profundidade, e longe de interpretações absolutamente superficiais, que o estímulo contínuo dado pelo Estado de Israel para que o Irã se enrede num cenário de provocações tem como objetivo que ele cometa um erro e inicie uma guerra. A mídia mainstream, tratando este assunto de forma rasa, analisa a crise com o Irã como um processo maquiavelicamente articulado para evitar o encerramento de pronto do desgastado governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Tal ação do atual governo teria como alvo o adiamento da sua deposição, cuja administração encontra-se sob o crivo da opinião pública por problemas na alçada judicial que o governante enfrenta, face à descoberta de corrupção na qual estaria envolvido. Outra análise também limitada é a que procura associar a ampliação do conflito, de local para regional, como um mecanismo do governo sionista para retirar do foco da mídia e da atenção pública os problemas militares e humanitários decorrentes da invasão da Faixa de Gaza.
Tais avaliações são personalistas e casuísticas, negando o que temos como pressuposto: a existência de um “sistema” sionista de poder interno (contra a população palestina) e também regional, em contínua expansão sobre os territórios circundantes ao atual Estado sionista, o sionismo externo.[2] O conflito com o Irã não é produto das ambições pessoais ou mesmo de interesse corporativo de uma ou mais correntes políticas representada no Knesset (Parlamento) ou que tenham assento no gabinete do governo sionista; ele pertence à estrutura intrínseca da constituição do Estado sionista, que do seu interior dá vazão às “forças profundas” oriundas do seu “Deep State”. Benjamin Netanyahu, ao contrário do que a crítica política liberal ou os sionistas de esquerda afirmam, é o melhor “homem de Estado” disponível para viabilizar no presente momento o projeto sionista na sua integralidade.[3]
No passado, quando quem governava não era a extrema direita, e sim os trabalhistas (a “esquerda sionista”), este mesmíssimo comportamento se manifestava em relação ao Egito; depois o Iraque tornou-se o alvo. Este procedimento perenemente expansionista e de aposta na escalada do conflito regional está em articulação com o imperialismo “clássico” que moldou meticulosamente várias fronteiras dos Estados Nacionais do Oriente Médio na defesa dos seus interesses econômicos, colocando o Estado sionista como um proxy para controlar a eventual rebeldia nesta periferia capitalista. A contestação sistêmica é liderada agora pela República Islâmica do Irã.
O colonialismo europeu iniciado no último quarto do Século XIX foi o responsável pela própria criação da expressão “Oriente Médio”, que é produto da preocupação em formatar uma agressiva política externa; a expressão foi consolidada no governo de Dwight Eisenhower (1953-1961), chamada de “Doutrina Eisenhower”. A partir deste mandato consolidou-se uma region building (construção regional) visando o controle de Estados Nacionais soberanos, mas fracos e dependentes dos poderes militar, econômico e político norte-americano e/ou europeu. O contexto histórico de formatação desta política era a Guerra Fria, mas incidiu (e perdurou ao término do conflito bipolar) na existência do Estado sionista e seu “sionismo externo”.
No presente momento, a política social genocida sionista na Faixa de Gaza e a expulsão, prisão/sequestro de cidadãos, roubo de terras e assassinatos contínuos do povo palestino na Cisjordânia ocorrem com o apoio ativo dos países do imperialismo “clássico”. Esta adesão solidária ao projeto de pax israelensis é facilitada pela assimilação por estes de que todo o povo palestino está irremediavelmente comprometido com o islã político, pois votou e se fez representar nas eleições de 2005 pelo Hamas, que é um proxy do Irã dentro do “eixo da resistência”. Disto a equação se fecha: o povo palestino é tomado como um proxy do Irã. Não é incomum que este ethos analítico por parte de largas parcelas da população do Estado sionista e a unanimidade dos seus governantes contaminem todo o debate e passem a considerar os habitantes da Palestina como sendo nazistas!!!!(sic). Esta visão distorcida da realidade do povo palestino permite que o Estado sionista se dê o leviano direito de desconsiderar as consequências de um conflito com o Irã na economia global, já que existe a justificativa de combate ao extermínio nazi-fascista! Os sionistas procuram dar conta, através da escalada contínua de crises que podem alcançar o status de guerra regional (com impacto global), da execução com baixo custo da construção da pax israelensis através de uma consorciação emocional entre sua existência espúria com os interesses do “Ocidente coletivo”, facilitando a operação do que chamamos acima de “sionismo externo”.[4]
O objetivo desta manobra é colocar o Irã numa posição de fraqueza que o levaria a um conflito desvantajoso, favorecendo a pax israelensis sobre os escombros de uma fantasia típica do imperialismo. A grande estratégia do Estado sionista desde 7 de outubro tem sido a de metamorfosear seu projeto político doméstico (o sionismo interno) em uma grande convulsão regional. Esta seria sinergicamente vinculada à ilusão do “Ocidente coletivo” de que este ficará livre da ameaça islâmico-nazista, pagando por isso o preço que for necessário.
A brutalidade e força da compreensão do que representa a crise atual por parte do governo sionista, e sua interpretação algo paranóica desta situação, faz com que o destino dos cativos na Faixa de Gaza tenha sido transformado quase em letra morta, malgrado seja alegado que eles possuem prioridade zero na condução da atual “guerra” contra o povo palestino. A destruição material da Faixa de Gaza é a prova deste abandono; nesta, a destruição quase que completa dos prédios, eventuais sítios onde poderiam estar sob custódia os detidos em 7 de outubro, deixa em dúvidas se a pusilânime atuação das IDF no interior da Faixa de Gaza realmente se preocupa em libertá-los.
O sionismo está apostando que sua fraqueza se transformará em força.
Finalmente, concluímos que a crise aberta em 7 de outubro criou uma oportunidade para o “sionismo interno”[5] repaginar o “sionismo externo”. O objetivo sempre foi e será construir a pax israelensis a partir da criação de um espetáculo dantesco de matança e destruição da vida política, econômica e social do mundo árabe/muçulmano, tão ao gosto da esquecida tese do “choque de civilizações”[6]. Até agora somente uma metade deste projeto está sendo implementado. A obstaculização da segunda ocorre devido ao preparo, experiência, caracterização precisa da estratégia iraniana de inserção na economia global a partir da definição objetiva de seus interesses nacionais, bem como da astúcia das políticas externa e de defesa do Irã. É desta forma que a segunda parte deste projeto macabro está sendo contornado.
P.S.: Dedico as palavras e análises acima à tripulação da “Flotilha da Liberdade”, que está partindo por estes dias da Turquia para levar ajuda humanitária à população da Faixa de Gaza. Decorreram quase dez anos desde que a última viagem ocorreu. Naquela tentativa de levar ajuda humanitária os devotados voluntários foram recebidos pela marinha sionista como um comboio militar, tendo sido assassinados em alto mar vários deles. Não precisamos nem insistir no temor que temos de que esta nova tentativa também corre o risco de ser alvejada impiedosamente. Na tripulação desta empreitada encontra-se o brasileiro Thiago Ávila, ao qual desejamos toda sorte ao seu corajoso ato de solidariedade em meio à barbárie promovida por aqueles que hoje “esqueceram” o que já sofreram um dia.
(*) Bernardo Kocher é Professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense