Finalmente, alguma coisa colou em Boris Johnson. E o que poderia ser mais pertinente para Johnson, o Bobo da Corte, do que ter sua carreira política interrompida por uma festa!
Pela primeira vez em muito tempo, o Labour Party (Partido Trabalhista) aparece visivelmente na frente dos Conservadores nas pesquisas.
Desde que despontou no cenário político, Johnson não recebe o escrutínio necessário pelo qual outros políticos passam. Apesar de não ter deixado grande legado como prefeito de Londres, o premiê deixou a Prefeitura não só ileso, mas aclamado.
Não obstante o seu mau desempenho em diversos cargos no governo de Thereza May, especialmente sua performance desastrosa como Ministro de Relações Exteriores, se tornou seu sucessor.
Johnson foi reeleito primeiro-ministro depois de uma campanha em que ele não deu entrevistas, não fez debates e sem plano de governo, mas com um slogan simples: Get Brexit done (Vamos fazer o Brexit). Enquanto Jeremy Corbyn era acusado de ser antissemita, antinacionalista e “perigoso” para o Reino Unido e os mercados, Johnson, com sua retórica ofensiva aos muçulmanos, homossexuais e mulheres, mal foi criticado.
Depois de ter conseguido passar o Brexit “na marra”, foi eleito apesar das complexidades e dificuldades que foram minimizadas e descartadas durante o referendo e no próprio processo eleitoral.
A passagem do Brexit no Parlamento foi bastante polêmica, com manobras duvidosas e antiéticas, entre as quais a suspensão do parlamento e o notório acordo conhecido como Protocolo da Irlanda do Norte, que o governo Johnson agora quer (ilegalmente) revogar, continuando sendo um dos maiores nós da política Britânica. Estas táticas não só afastaram pró-europeus, mas também os Conservadores que ainda tinham alguma fibra moral.
Não obstante a ética, a vitória eleitoral de Johnson foi a única a dar maioria decente aos Conservadores desde que eles derrotaram Gordon Brown (Labour) em 2010.
Apesar das crises contínuas provocadas e clara incompetência, a oposição débil e uma mídia tradicional não disposta à críticas, inclusive, ironicamente, a BBC, ameaçada de cortes do orçamento, os Conservadores se mantiveram de pé até agora.
A “festa”, entretanto, parece ter sido a bala mágica que atravessou o escudo protetor do partido e seu líder. Porém, há de se perguntar a quem na mídia e no próprio partido de Johnson interessa sua derrubada?
Nada até agora atingiu muito a reputação de um governo que tem demonstrado ser um antro de corrupção, clientelismo, compadrio, egoísmo e malvadeza e devemos nos perguntar por que o tal evento foi vazado agora, dado que aconteceu há quase dois anos atrás?
A total falta de vontade de Kier Starmer se opor ao governo “para não perder votos na pandemia” e por querer mostrar à mídia que ´”não é Corbyn”, o líder dos trabalhistas, acabou levando um grupo de juristas a fazerem nas Cortes o que Labour deveria fazer no parlamento.
The Good Law Project tem consistentemente acionado a Justiça contra os atos ilícitos deste governo, em questões que não estão sendo levantadas adequadamente nem pela oposição e nem pela mídia.
Neste começo do ano, o grupo ganhou mais uma batalha, provando que havia no governo Johnson uma “via VIP” para licitações nas compras de Equipamento de proteção individual (EPIs). Via VIP está, claro, aberta aos amigos dos ministros de Johnson e aqueles próximos ao governo.
De acordo com o Tribunal de Contas Britânico, 493 fornecedores foram contratados através de contatos políticos e £10,5 (mais de R$70 bilhões), a metade de todos os contratos durante a pandemia, aconteceram sem licitações.
Verdade seja dita, a tal festa que ameaça derrubar Johnson machucou profundamente a população britânica. Enquanto o primeiro-ministro e seus mais de 100 funcionários convidados bebericavam, comendo canapés no jardim de sua residência, o povo – em lockdown – enterrava seus entes queridos via vídeo.
Porém, em termos de danos concretos, nada demonstra melhor a natureza real deste governo que os dois projetos de lei (PL) que se encontram na Câmara dos Lordes: sobre imigração e fronteiras e o projeto sobre policiamento.
Ambos escancaram como a extrema direita têm avançado plenamente sobre a centro-direita britânica. O PL sobre imigração e fronteiras é uma afronta à Convenção sobre Refugiados da ONU, como também aos direitos humanos. Numa lista imensa de maldades, o projeto pretende diferenciar e criminalizar aqueles que buscam asilo dependendo de como chegam no país. Só seriam aceitos aqueles que passaram pelos centros de processamento do governo britânico.
Ora, sabemos que refugiados nem sempre podem sair de seus países documentados, muito menos são capazes de buscar as autoridades britânicas e esperar quietinhos em casa até que seus casos sejam avaliados. De maneira inédita, a ACNUR (Agência da ONU para Refugiados) e Relatores Especiais da ONU, entre outros, declararam preocupação com a PL que, se implementada, violaria as obrigações internacionais do país.
Simon Dawson / No 10 Downing Street/ Flickr
Pela primeira vez em muito tempo, o Partido Trabalhista aparece na frente dos Conservadores nas pesquisas
Uma das preocupações se dá em relação à “legalização” do chamado sistema de push back (que aliás já está em prática), onde patrulhas marítimas forçam barcos com refugiados encontrados em águas britânicas de volta às águas da União Europeia. A lei também estabeleceria “campos de concentração” no estrangeiro.
O governo ainda busca acordos para centros de detenção fora do Reino Unido para manter os solicitantes de asilo enquanto seus casos são processados. Nenhum país até agora se manifestou positivamente em relação a estes centros, cópia do modelo australiano.
Outra ilegalidade (maldade) do novo projeto é dar poderes ao titular do Ministério do Interior de revogar a cidadania de britânicos que possam ter mais de uma nacionalidade, sem que o indivíduo saiba. No Reino Unido, os cidadãos que dos chamados territórios ultramarinos não têm os mesmos direitos que cidadãos da metrópole e poderiam ser chamados de cidadãos de segunda classe.
Porém há anos que os naturalizados, pessoas com dupla nacionalidade, ou descendência estrangeira têm uma cidadania inferior, já que as suas nacionalidades podem ser revogadas se a(o) ministra(o) assim o quiser. Se este PL passar, estes cidadãos não poderão contestar ou se defender, já que não será mais necessário que eles sejam informados.
São seis milhões de pessoas potencialmente afetadas, na maioria oriundas das minorias étnicas ou com pais estrangeiros. Não serviu de advertência os erros cometidos no escândalo do Wind Rush, onde o governo, equivocadamente, deixou de reconhecer a cidadania de mais de 13.000 pessoas que chegaram no Reino Unido como crianças e que hoje estão na idade de se aposentar. O governo ainda deve dezenas de milhões de libras em indenizações a estas famílias.
O PL sobre policiamento é mais um passo em direção ao autoritarismo. Um dos pontos mais controversos tem a ver com a restrição de protestos, que dá poderes à polícia de prender manifestantes que possam estar `perturbando a paz` (o que pode ser simplesmente fazendo barulho demais). Outra disposição lida explicitamente com as manifestações: bloqueios de estradas, vias, trens, aeroportos e outras instalações se tornariam crimes punidos com prisão de até 12 meses – afetando diretamente os manifestantes ambientalistas, tais como o Extinction Rebellion (ER). O governo não esconde o fato que foram justamente as manifestações de grupos como o ER e Black Lives Matter que o levou a formular tais disposições.
Outras medidas autoritárias incluem a outorga de maiores poderes de detenção e revista à polícia e tornar a invasão de propriedades alheias em delito penal, criminalizando assim os povos ciganos, romani e outras comunidades nômades, já que o estabelecimento de acampamentos fora dos locais designados, que não são suficientes para acomodar toda esta população, pode implicar em prisões.
Como já apontado, tudo isto acontece mais ou menos sem críticas e oposição. Não diferente do Brasil, o Reino Unido se entretém com as bobalhadas de seu rimeiro-ministro. Johnson está em perigo. Porém, no parlamentarismo britânico, sua iminente caída só implica nos Conservadores escolherem um novo líder, principalmente dado que eles têm maioria suficiente para sobreviver qualquer pedido de novas eleições.
A questão seria quem deverá substitui-lo? O que é certo é que do ponto de vista ideológico, a caída de Johnson não deve nos animar. O conservador é oportunista e populista e talvez seu grande trunfo político tenha sido o de quebrar o chamado “muro vermelho” das cidades ex-industriais do norte da Inglaterra, trazendo um novo tipo de eleitor para o partido. As demandas e necessidades deste eleitorado conflitam com os valores neoliberais, mas têm feito o governo investir nos programas de apoio durante a pandemia, e Johnson têm muita consciência disso.
Dos seus possíveis substitutos, quatro participavam de um grupo parlamentar chamado “Free Entreprise Group”, cuja meta era estar mais à direita que Margaret Thatcher: Dominic Raab, Priti Patel, Liz Truss e Kwasi Kwarteng. Juntos escreveram um livro chamado Britania Unchained, descrevendo um futuro com ainda menos regulamentação, mais flexibilização e menos Estado.
Patel é também ministra do Interior e a principal arquiteta dos PLs descritos acima, e Raab, ministro da Justiça, tem como um de seus objetivos retirar o Reino Unido da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Outros candidatos com chances, Rishi Sunak, o ministro da Finanças, e Sajid Javid, ministro da Saúde, são ultra neoliberais. Javid renunciou à posição de ministro das Finanças justamente porque ele não queria abrir o bolso para poder contemplar os novos eleitores do partido. Sunak, que trabalhou para a Goldman Sachs e hedge funds, é relativamente desconhecido e tem cumprido sua missão em apoiar a população durante a pandemia. Ele é o favorito para a sucessão de Johnson e tem se mantido quieto durante toda esta crise.
Dizem, no entanto, que sua tendência natural seria também apertar os cintos e manter o Reino Unido em austeridade. A ver.