“Respeitando o marco institucional”, o Peru conseguiu a façanha, digna de replay, de ter sete presidentes em seis anos. Todos eles com contas pendentes na Justiça.
A saga começou com a renúncia de Pedro Pablo Kuczynski, em março de 2018, pela iminência de seu impeachment. Depois tivermos a ridícula renúncia de Mercedes Araoz, que tentou um golpe contra Martín Vizcarra em setembro de 2019, mas durou apenas duas horas no cargo.
O próprio Vizcarra seria destituído em novembro de 2020 e substituído por Manuel Merino, que durou cinco dias, forçado a abandonar o cargo por pressão dos movimentos populares. Com tudo isso, Francisco Sagasti foi quem terminou o período presidencial entre 2016 e 2021.
O segundo trágico episódio político foi o de Pedro Castillo, que tomou posse como presidente do Peru em julho de 2021. Novamente, a queda aconteceu de forma “constitucional”, ele foi destituído em 7 de dezembro de 2022 após o suicídio político que foi a sua tentativa de golpe, com um decreto de dissolução do Congresso que não foi aceito por ninguém.
Em seu lugar entrou Dina Boluarte, sob a proteção das Forças Armadas e das polícias, com um discurso de “recuperação da paz e da ordem”, que soa arrogante diante das mais de 63 mortes de manifestantes nos últimos dois meses e meio. Ela insiste em dizer que seu governo está “respeitando a ordem constitucional”. Incrível! Mas é verdade.
O fascismo peruano está instalado
O fascismo, em teoria, é um pacote ideológico que se materializa por meio de um movimento político e de um sistema de governo totalitário de extrema direita, apoiado pelas Forças Armadas. Seus maiores objetivos estão associados a caricaturar a democracia, acabar com o comunismo, as liberdades e o internacionalismo. Em geral, ele defende a superioridade de uma raça e estabelece como necessidade social o uso da violência contra quem se opõe a ele, acusando-o de “inimigo da Pátria”. Os regimes fascistas, como os de Hitler, Mussolini ou Pinochet, veneravam o líder absoluto.
O fascismo que vem se instalando no Peru tem suas peculiaridades. Não tem uma ideologia ou um líder carismático. Boluarte é apenas uma marionete que responde às Forças Armadas, e sua chegada e manutenção no poder são parte de um projeto patrocinado pelo Departamento de Estado norte-americano. Sendo assim, ela pode prescindir do apoio de um partido ou movimento político, ferramentas tão desacreditadas pelo neoliberalismo.
A “democracia”, na boca de Dina, soa como um refrão repetitivo. Ela odeia comunistas, acredita na supremacia dos brancos e dos “quase brancos” (mestiços com costumes de brancos) sobre os “índios”, os “caipiras”, os “camponeses”, os “indígenas”, etc. Ao se referir aos massivos protestos no sul, a presidente disse que “Puno não é o Peru”, alcançando o clímax daquele ódio de classe que caracteriza o fascismo.
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Fascismo é um pacote ideológico que se materializa por meio de movimento político e de um sistema de governo totalitário de extrema-direita
Esse fascismo tipicamente peruano está prestes a consumar uma de suas maiores vitórias, que soaria como escárnio às expectativas do povo. O Legislativo e o Executivo, no marco de seu famigerado pacto de permanência até 2026, decidiram congelar o projeto de antecipação das eleições, fortemente demandado pelos movimentos sociais e que havia sido oferecido por esses mesmos setores de direita semanas antes.
Mas isso não é nada surpreendente. O fascismo frequentemente usa da hipocrisia e do cinismo como recursos para manipular a opinião pública. Não importa o que as pessoas digam, não importa nenhuma das 63 mortes de civis durante as manifestações, o que importa é derrotar o movimento popular a sangue e fogo, “em defesa da democracia e da constitucionalidade”.
A criminalização dos protestos também não é um exagero quando se trata de “defender os interesses de 33 milhões de peruanos”. Este sofisma, que exala fascismo cru, é usado pelo atual governo todos os dias. Alguns peruanos, especialmente os grandes empresários, que aplaudem a ação do governo. A Procuradoria Nacional, parte do núcleo fascista, não tem pressa em investigar os assassinatos de 63 peruanos em Puno, Ayacucho, Cusco, Apurímac e outras regiões. Diferente do que acontece com ex-presidente Castillo, “o comunista”, cujo caso avança veloz e constante, como um cruzeiro em águas calmas.
A única coisa que importa, segundo os que estão no poder, é a defesa do “estado de direito” – o que, no caso peruano, significa a defesa servil do Executivo e do Legislativo, liderados por pessoas que respondem por acusações de crimes contra a humanidade. A criminalização da oposição e a perseguição de dirigentes políticos e sociais deveriam ser tarefas prioritárias do Ministério Público, que atua em articulação com um Poder Judiciário indigente e Tribunal Constitucional cúmplice dos fascistas. Basta ver o inquérito que apura os critérios para o uso de armas de fogo por parte das polícias, que vem apontando o caminho para justificar os crimes derivados desse uso.
Resistência e resiliência das manifestações populares
Boluarte acredita que quanto mais pessoas morrerem por sua repressão criminosa, mais rápido ela acabará com os protestos populares. Com essa lógica, ela acredita que o povo “já se cansou” e que o medo se instalou na cabeça dos “índios” e dos “caipiras”. Por isso, acredita que chegou a hora de abrir espaço para o “diálogo” com os derrotados pela repressão criminosa.
Mas o povo não está nem cansado nem com medo. A luta vai continuar, com outro ritmo e outros métodos, mas vai continuar, “até que todos eles caiam”. De Puno, cidade do sul do Peru onde a mobilização tem sido maior e mais insistente, se escuta uma mensagem forte e inequívoca: enquanto Boluarte permanecer no poder, as principais rodovias continuarão bloqueadas e os protestos nas ruas continuarão incessantemente.
Se somaram recentemente algumas cidades do norte do país, como Piura, Trujillo e Ancash. No centro e no leste do Peru, houve certa desmobilização, mas para reunir forças e voltar às ruas em breve. Lima continua dando sinais de que está saindo de sua estagnação conservadora, com uma espécie de “guerra de guerrilhas”, que combina marchas, protestos e manifestações artísticas contra o regime. A “paz criminosa” que Boluarte buscava não virá agora, nem virá jamais, pois há um povo que se sabe depositário do poder, soberano acima do Executivo e do Legislativo, e que não pode ser subjugado.
Todas as regiões do Peru reclamam que as 63 mortes de civis por balas assassinas da polícia não fiquem impunes. “O sangue derramado jamais será esquecido”, vociferam nas ruas, praças e estradas. O que temos hoje é uma retirada tática, no que será uma longa luta. Não há sinal de arriar as bandeiras pelas quais se está lutando. Para mantê-las no ar é preciso um respiro, uma trégua para realizar os ajustes táticos e estratégicos da mobilização popular.