O sétimo “Relatório sobre as condições de detenção na Itália” registrou o estado do sistema carcerário italiano e os seus efeitos sobre os detentos até o final de 2010.
Do estudo, emerge um retrato perturbador causado pela superlotação nas prisões, cuja origem, segundo o levantamento, está fortemente ligada às políticas contra a imigração clandestina comandadas pelo governo de Silvio Berlusconi em 2002 – uma situação agravada pelo aumento substancial do fluxo migratório vindo do norte da África, tendo a ilha de Lampedusa como foco crítico.
Arquivo pessoal
Patrizio Gonnella: A Itália tem o mais alto índice de superlotação na área da União Europeia
Juntamente com a lei Fini-Giovanardi, de 2006, acerca das drogas, esta política tem lotado as prisões de pessoas sem permissão de residência e dependentes tóxicos, demandando da justiça penal a administração de fenômenos de cunho social.
A Antigone, que conduziu o estudo, é uma associação italiana que defende “os direitos e as garantias no sistema penal”, e é composta principalmente por juízes, acadêmicos, parlamentares e agentes penitenciários envolvidos com a justiça penal. Por mais de 20 anos, a associação se ocupa, entre outras coisas, de monitorar as condições de vida dos presidiários. Patrizio Gonnella, presidente da Antigone, relatou ao Opera Mundi os efeitos concretos que essa situação exerce sobre a vida dos detentos.
Quais dados derivam do relatório?
Nós confirmamos um estado de colapso. Prisões em mau estado e mal geridas onde as pessoas detidas, em muitos lugares, são submetidas ao ócio forçado. Leis de excessiva rigidez produziram uma aglomeração que torna o cotidiano muito difícil.
Os presidiários confinados em 206 prisões italianas somam cerca de 68 mil. O que dá 25 mil pessoas além do número de lugares regulamentados. Outros 25 mil são detentos estrangeiros. Em dez anos, a população carcerária como um todo sofreu um aumento de 15.743. Os estrangeiros presos, por sua vez, aumentaram mais de 11 mil. Dois terços do crescimento da população carcerária, portanto, foram determinados pelos estrangeiros. O outro terço diz respeito aos prisioneiros oriundos da Itália setentrional.
O aumento dos estrangeiros nas prisões é provocado por leis que punem o não-cumprimento da ordem de expulsão e preveem agravamento de pena para os reincidentes. Quanto aos presos do norte da Itália, é mais dificil identificar as causas do crescimento. Certamente, pesa a piora das condições econômicas e a disseminação das máfias no norte do país. Contra todos os prognósticos ou preconceitos, hoje o centro-norte produz mais presos do que o centro-sul.
A Antigone participa do Observatório Europeu sobre as prisões. Existe uma diferença entre as condições da vida carcerária na Itália e nas outras nações europeias? Se sim, qual é e em que medida?
A Itália tem o mais alto índice de superlotação na área da União Europeia. A construção de presídios, comprimida entre a ineficiência e a corrupção, não acompanhou o rápido crescimento da população carcerária. Esta é a particularidade italiana que deve ser lida junto com os números elevadíssimos e alarmantes de prisioneiros sob custódia cautelar, aproximadamente 45% do total aglomerado. Finalmente, a Itália nunca foi dotada de um órgão independente de controle dos locais de detenção, ao contrário dos outros países europeus.
Qual é o impacto concreto da superlotação nas condições de vida dos detentos?
Existem prisões onde cada detento dispõe de menos de dois metros quadrados. Vivem por meses, ou anos, empilhados uns aos outros com escassíssimas oportunidades de participar de projetos de reintegração social. A superlotação gera desespero nos detentos e stress nos operadores.
O senhor Kalashnikov foi o primeiro cidadão detido a recorrer à Corte Europeia de Direitos Humanos e a obter a condenação de um Estado (neste caso a Rússia) pelos efeitos trágicos da superlotação carcerária. O senhor Izet Sulejmanovic foi o segundo a usar os tribunais europeus e a vencer, apesar de receber apenas mil euros. Neste caso, a ser condenada por tratamentos desumanos e degradantes, não estava a Rússia, mas a Itália.
Sulejmanovic, durante alguns meses, foi condenado a viver no cárcere romano de Rebibbia em somente 2,7 metros quadrados. Viver em um ambiente assim, tão pequeno, significa não ter espaço para escrever, para sentar-se, para mover-se. Significa perder a privacidade ao usar o banheiro. Significa, de fato, estar sempre na cama.
O Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura – organismo oficial do Conselho da Europa – afirmou que o espaço mínimo para um detento em uma cela individual não pode ser inferior a sete metros quadrados; em uma cela múltipla, cada detento deve ter ao menos quatro metros quadrados à sua disposição.
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Esta situação é resultado de políticas erradas ou é uma consequência inevitável do sistema prisional?
A superlotação não é uma calamidade natural. É o resultado de políticas penais seletivas e de classe. Na cadeia, estão aqueles que não têm oportunidade econômica e social. A nossa lei de imigração pune a condição de imigrante. A nossa lei de drogas pune a condição de consumidor de substâncias tóxicas. O nosso direito penal representa a ética do Estado.
Janeiro passado, por ocasião da inauguração do ano judiciário, o procurador geral Vitaliano Esposito mencionou a “tragicidade da condição carcerária”. Vocês aproveitaram essas palavras para denunciar o impacto que leis como a Bossi-Fini (imigração) e a Fini-Giovanardi (drogas) têm sobre esse sistema. Uma reforma das leis poderia produzir realmente um efeito substancial?
A única solução para a superlotação é restituir a dignidade às pessoas, independentemente da sua etnia, situação de pobreza, saúde mental, ou dependência tóxica. Um aparelho antiproibicionista sobre essas questões teria um grande impacto em termos de segurança. A polícia poderia ocupar-se da máfia e de crimes de colarinho branco ao invés de permissões de residência vencidas e “baseados” nas escolas. E também reduziriam os custos econômicos, melhoraria a situação dos direitos humanos.
Qual é a situação na Itália no que se refere aos suicídios na prisão? Há diferença em relação ao resto da Europa? Existe uma medida capaz de reduzir este fenômeno?
Na Itália há tantos suicídios quanto em outros países europeus. Isso não nos tranquiliza ou nos consola. Cada morte é uma tragédia que tem origem nas escolhas desesperadas do indivíduo.
Dito isso, em condições de superlotação é bem mais difícil que os operadores tomem ciência do desespero de um detento individualmente, reduzido a um número e ao anonimato. Muitas, demais, também em relação aos padrões europeus, são as mortes causadas pelas más condições sanitárias.
Os recentes casos de mortes sob detenção ou custódia cautelar (Stefano Cucchi, Federico Aldrovandi, Aldo Bianzino para citar alguns – todos os três presos por posse de substâncias tóxicas) trouxeram dramaticamente à tona o tema das condições de detenção. Estes casos tem a ver com o abuso de agentes individuais ou são também produto do sistema carcerário italiano?
Reduzir a violência dos guardas sobre os detentos a uma questão de “maçã podre” é um erro cultural e político. Em um país onde a tortura não é crime, chega do alto uma dramática mensagem às forças policiais: torturar não é tão grave assim.
Às vezes, histórias individuais podem ser ilustrativas de uma condição difundida, capazes de mostrar melhor do que uma análise estatística o funcionamento de um sistema prisional. Os casos de Cucchi e Aldrovandi impressionaram a opinião pública e certamente produziram o efeito de rasgar o véu de indiferença que geralmente envolve casos como esses.
Qual é a percepção da opinião pública italiana sobre as condições de vida nas prisões? A impressão de que se esteja difundindo um senso de “justicialismo” é devida somente à atenção mórbida que a mídia reserva aos casos de crimes ou é um aspecto concreto da sociedade italiana no ano de 2011?
Nos últimos anos, assistimos a um estranho fenômeno: de um lado, os telejornais tornaram-se lugares de mórbida divulgação de crimes; de outro houve importantes investigações jornalísticas sobre as prisões italianas.
Este é, seguramente, um sinal da ruptura de um pensamento único. Surtiu efeito ainda sobre a opinião pública a aparência de Ilaria Cucchi, irmã mais nova de Stefano Cucchi, morto em outubro de 2009 por agressões da polícia que, com seu aspecto doce, conseguiu quebrar o melaço televisivo e suscitou mais de mil denúncias de várias ONGs.
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