Pegos no fogo cruzado do conflito entre os guerrilheiros das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e o exército colombiano, os indígenas da etnia Nasa, no Vale do Cauca, na Colômbia, decidiram se armas com bastões para salvar a comunidade das balas.
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Usando bastões, indígenas colombianos resistem contra guerrilha e governo
Opera Mundi entrevistou o líder indígena Feliciano Valencia e Marcus Yule, chefe do município de Toribío, no Cauca, para entender os motivos desse movimento de resistência.
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Opera Mundi: O que está acontecendo nas comunidades indígenas de Cauca?
Feliciano Valencia: Cansamos de mortes, cansamos dos grupos armados legais ou ilegais interferindo e destruindo o nosso território e massacrando a população civil. Cansamos de tanto desrespeito, que vem aumentando ao longo dos anos, e do extermínio sistemático dos povos indígenas. Por isso decidimos interferir na questão, não podemos ficar de braços cruzados, não podemos continuar reunindo mortos, não podemos continuar atendendo feridos. Nós temos que acabar com essa guerra para que possamos viver em condições mais dignas e para que parem de matar. Por isso dizemos que, se for preciso morrer neste esforço, então vamos morrer, pois de qualquer maneira já estão nos matando.
OM: Como está o diálogo com o governo?
Feliciano: Estamos conversando com o ministro do interior. Nós colocamos três condições: 1) sem acordo militar para as medidas de controle territorial que estamos fazendo; 2) se a guarda indígena se retirar do topo do monte Berlín, a polícia também deve se retirar de lá, porque este lugar é sagrado e precisa estar tranquilo para que continue protegendo os povos indígenas; 3) devem ser interrompidos os processos de acusação anunciados pelo governo nos últimos dias, em relação aos líderes, autoridades e aqueles que têm se exposto na mídia e sustentado o debate em nível nacional.
E, claro, deve ser feita uma declaração pública desmentindo as acusações e estigmatização feitas pelos altos funcionários da polícia, o ministro da defesa e o próprio governo quando dizem que estamos infiltrados ou aliados à guerrilha das FARC ou que tudo isso é para que a guerrilha permaneça no território quando o exército se retirar. Eles têm de retratar isso, do contrário não podemos continuar conversando. O que existe aqui são pessoas pedindo justiça e o cumprimento de direitos e que nos deixem construir esse cenário de paz. Nada mais.
OM: Na verdade, após expulsar a polícia, vocês capturaram e julgaram alguns guerrilheiros…
Feliciano: Claro, nós não queremos nenhum dos atores armados, a nossa aposta é pela paz. Por isso, quando capturamos guerrilheiros de família indígena, aplicamos o nosso sistema tradicional de justiça. Esses quatro jovens que vocês viram foram capturados enquanto preparavam um ataque ao exército em nosso território. As penas foram chicotadas. É um exercício espiritual. Essas pessoas tinham uma desarmonia não apenas exterior, mas interior, que, portanto, deve ser extirpada de dentro.
Aplica-se o chicote como correção e não como castigo, porque não se trata de infligir dor, mas de eliminar definitivamente esses males. Este chicote traz a medicina das montanhas dos territórios, a energia da noite e do dia e as forças de nossos lugares sagrados. Eu sei que serão corrigidos, porque fui testemunha de casos semelhantes, em que melhoraram. Por enquanto, ainda sofrem da doença da morte e do desrespeito e, enquanto não se curarem, não podem voltar à comunidade. Agora, vamos conversar com as famílias e eles serão deixados nas mãos de nossos sábios, para em seguida haver um processo de reintegração à sociedade. Se não permanecem em nosso território como índios, devem partir.
OM: Quem mais precisa se harmonizar?
Feliciano: Os meios de comunicação também deveriam receber chicotadas, pois, em vez de conduzir a sociedade colombiana à compreensão do mundo indígena, o que eles estão fazendo é empurrar uma opinião com a firme intenção de nos prejudicar como povos.
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OM: Por que decidiram agir pela força contra a polícia?
Marcus Yule: Com o governo daqui, se não é pela força ou se não pressionamos, a questão não é atendida. Tem de haver vítimas e envolvimento da população civil para que nos ouçam. Muitas vezes nós pedimos a saída do exército e da polícia, e o governo responde apenas que eles trazem segurança. Mas, com nossa história de décadas e acontecimentos concretos e cronológicos, podemos provar que é mentira.
Portanto, as forças públicas e especiais não nos servem de nada, geram mais confronto e mais guerra e nós ficamos em meio ao conflito e aos tiroteios. Pensam que as estruturas que constituem o exército e a polícia são apenas para defendê-los e não para defender a população civil, porque, enquanto eles estão nos bunkers, nós somos deixados em meio às bombas, cilindros de gás, balas e tiros.
Em Toribío, desde 12 de junho, eles atiram uns contra os outros e até atravessar as ruas tornou-se perigoso com as balas que ressoam por todo lado e atingem nossas casas, mercados, animais. Quando um explosivo caiu em nosso hospital, deixando vários feridos, inclusive uma enfermeira que perdeu suas pernas, decidimos que bastava.
OM: Mas por que os colombianos não os compreendem?
MY: Porque Bogotá é outra coisa, eles não estão aqui, não vivem diariamente o que vivemos. A opinião pública é manipulada pelo governo com os meios de comunicação, fazendo parecer que nós somos o problema, que o movimento indígena está contra a lei, e nos pintam como outros guerrilheiros, quando na verdade nós é que somos as vítimas, os que são mortos em uma guerra que não é nossa.
Estamos em um estado social de direitos, temos nossos direitos. Existem declarações que afirmam que os territórios indígenas são autônomos, que para entrar neles as forças públicas deveriam fazer uma consulta prévia consensual, informada e livre. Mas não foi assim, os militares simplesmente entraram, nós dissemos várias vezes e há muito tempo que não podiam ficar e que não permitimos as bases militares.
E com a guerrilha é a mesma coisa, nos reunimos com eles, dissemos para não lutarem em meio à população civil, que se têm de fazer a guerra que a façam onde não há civis, para não usarem mais bombas e não atacarem mais os nossos povos. Mas, também com eles, de nada adiantou o diálogo.
OM: Desde quando vivem nessa situação?
Marcus: Nos conscientizamos a partir dos anos 1970, mas foi a partir de 2000 que se desenvolveu o aspecto militar. Nos reunimos e decidimos formar núcleos nas cidades de Cali, Popayan e Santander de Quillichao. Quando os combates se intensificam evacuamos a população e nos reunimos em locais de assembleia permanente como este, e a guarda garante que não venham lutar perto de nós. Em 2004-2005 ficamos seis meses longe de nossas casas.
Nós não temos armas e não queremos a guerra aqui. Pedimos apenas que nos deixem em paz. Temos um plano de vida e uma proposta para todos: que comecem a falar de paz.
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