Os meios de manter uma hegemonia consistem, para além da ótica material e coercitiva direta, no estabelecimento de agendas e ideias que servem ou para promover a conexão entre atores poderosos e dominados ou para desviar o foco de atenção de temas mais urgentes e necessários de serem debatidos. Ademais, toda agenda surge vinculada a um determinado contexto histórico, ao interesse de determinados atores e ao caráter genérico e potencial de difusão e aceitabilidade que possuem. No âmbito das relações internacionais, tem constituído instrumento importante para garantir a Governança Global, desde os anos 1970, a imposição de agendas vindas do Norte-Ocidente destinadas a “amarrar” – ou garantir uma impressão de consonância entre os interesses dos países do Norte e do Sul. No momento atual, a agenda da corrupção, embora ainda não tão difundida quanto outras, e ainda restrita ao contexto da América Latina, se encaixa dentro deste contexto de substituição de agendas mais relevantes para países em desenvolvimento (como a fome, pobreza e desigualdade) por pautas que servem para desviar o foco da origem das mazelas reais que acometem as regiões periféricas do globo.
Nos anos 1920 e 1930, Antônio Gramsci desenvolve os conceitos de hegemonia e de bloco histórico para demonstrar como, no âmbito interno do Estado italiano e de outros Estados, as classes dominantes promoviam a bandeira do nacionalismo e das ameaças externas (que também eram internas) para garantir a sensação de unidade entre capitalistas, elites e o povo trabalhador (do campo e da cidade). Tal instrumento vinculava diferentes elementos sociais que, a princípio, tinham interesses divergentes, em uma unidade em torno de alguma agenda.
A hegemonia se expande a nível mundial quando países e povos dominantes passam a promover agendas e pautas que se colocam como aglutinadoras de interesses tanto de povos desenvolvidos quanto de povos periféricos. Nos anos 1970, com a ascensão do Terceiro Mundo, as descolonizações na África e na Ásia, a difusão da ideologia do desenvolvimentismo e a industrialização de países fora do Eixo Europa-EUA, surgem novas agendas que têm origem nos países centrais e se espalham como sendo de interesse da humanidade (independente da heterogeneidade dos povos e Estados que surgiam). O primeiro exemplo que é possível dar é a agenda do meio-ambiente, pela primeira vez colocada em 1972-1973 pelo Clube de Roma, alardeada por um estudo encomendado pelo Massachussets Institute, que apresentava dados demonstrado a finitude e a escassez de combustíveis fósseis e os possíveis danos à economia global e ao meio-ambiente que o modelo de industrialização da época possuía. Não coincidentemente, em 1973, o Primeiro Choque do Petróleo colocava a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), formada sobretudo por países do Terceiro Mundo, como ator importante na economia internacional. EUA, Europa e Japão, diante disso, passaram a desenvolver mecanismos conjuntos – e, cada um deles, isoladamente – para fazer frente à crise econômica e financeira que os assolava e a defender o chamado ‘crescimento zero’, de maneira crítica e reativa à rápida industrialização no Terceiro Mundo e nos Novos Países Industrializados (NICs). A pauta do meio-ambiente passa a se institucionalizar cada vez mais na ONU e em outros organismos internacionais e exercer instrumento de pressão e barreira ao comércio e ao desenvolvimento em países periféricos e semiperiféricos. No Brasil, por exemplo, diversas ONGs se instalaram na Amazônia com o intuito de promover tal agenda junto a comunidades locais e a criticar a presença do Estado e o dano que o Estado brasileiro supostamente causava ao meio-ambiente local. Se inserindo como pauta importante para a humanidade como um todo (afinal, quem seria contra o meio-ambiente?), essa pauta passou constantemente a servir como forma de promover o interesse econômico dos países centrais na periferia mundial.
Direitos humanos como instrumento de pressão
Não somente a agenda de meio-ambiente, mas também a pauta dos direitos humanos nos anos 1980 se proliferou como elemento aglutinador dos interesses das sociedades civis de diferentes povos – com forte aceitação da esquerda e das elites intelectuais dos países mais pobres. Entretanto, desde que se colocou como tema internacional, fora utilizada como forma de pressão contra governos de países do Oriente Médio, Ásia, dos satélites da ex-União Soviética no Leste Europeu e mesmo na África e América Latina. No Leste Europeu, as ex-repúblicas soviéticas pouco a pouco passaram a ser influenciadas pela pauta, acoplada à defesa da abertura e reforma do Estado, como forma de libertação do domínio de Moscou. No Oriente Médio, nos anos 1990 e 2000, diversas vezes os direitos humanos foram invocados como justificativa para intervenção em governos de países autoritários ou países em conflitos civis, como Iraque, Síria, Líbia, entre outros. A difusão de ONGs de direitos humanos e a presença de organizações internacionais que tratam do tema em diversos países serviu como instrumento de financiamento de oposição, de grupos civis e eventualmente de rebeldes armados que passavam a enfrentar governos soberanos. Mesmo Osama bin Laden fora treinado com financiamento norte-americano na época da Guerra no Afeganistão, nos anos 1980. Além disso, de forma mais sutil, o discurso de direitos humanos serviu para ofuscar e desviar o foco de atenção dos movimentos de esquerda na Europa e nos países centrais, que pouco a pouco abandonaram a ideia de luta de classe e viram como único caminho possível a luta pelo ‘reconhecimento das diferenças’, a defesa das minorias e as pautas de gênero, discriminação racial e LGBTs.
No bojo dessas pautas, nos anos 1980, vem acoplada a ideia da difusão da democracia, da liberdade política e civil e da ‘reforma do Estado’, sinônimos de desenvolvimento, modernização e inserção no mundo ocidental. O neoliberalismo se difunde mesmo em círculos anteriormente de esquerda e, sobretudo com a pressão da crise da dívida no Terceiro Mundo (resultado do Choque dos Juros promovido pelos EUA), América Latina e África se rendem ao receituário neoliberal, fazendo dos anos 1980 e 1990 as décadas perdidas, com crise econômica e social generalizada. Na Ásia, Índia e China, mesmo que de maneira diferente, são forçados a abrir-se à economia capitalista global e aceitar uma diminuição do papel do Estado.
Todos estes temas e agendas se colocavam como universais, supostamente aglutinando interesses gerais de países ricos e pobres, desenvolvidos e subdesenvolvidos, centrais e periféricos. A forma como arregimentavam setores da sociedade civil e da intelectualidade de países do Terceiro Mundo retratava de forma clara a capacidade hegemônica de pautas originadas na Europa, EUA e no mundo desenvolvido. Todas elas foram utilizadas não para promover desenvolvimento global ou superação das mazelas sociais dos países do Sul, mas para garantir a hegemonia do capitalismo e a manutenção do status quo de desigualdade internacional. O problema não é necessariamente a inutilidade destas pautas, de fato relevantes (como a de meio-ambiente e direitos humanos, por exemplo), mas a forma como são instrumentalizadas pelas elites e pela sociedade civil global, por ONGs e Organizações Internacionais.
Flickr/paulisson miura
O que importa desta agenda não é se é importante ou não para o desenvolvimento dos países do Sul, mas como está sendo utilizada para derrubar governos
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Pautas para desviar o foco
Se nos anos 2000 parecia que os países periféricos e semiperiféricos estavam conseguindo promover uma agenda própria e um retorno à centralidade do Estado como motor do desenvolvimento – se livrando das dívidas junto ao FMI e Banco Mundial, fundando os BRICS e se desvencilhando da crise financeira de 2008 – nos anos 2010 emergem novas pautas hegemônicas voltadas a desviar o foco e garantir uma nova dominação dos países centrais sobre a periferia mundial (e mesmo sobre as potências médias, como os BRICS). Na América Latina, especificamente, a Cúpula das Américas de 2018, tendo como tema principal o combate à corrupção na região, somente evidenciou um processo que se estendeu por anos no Brasil, no Paraguai e em outros países. Não estão claras quais as raízes internacionais da agenda da corrupção, mas se percebe facilmente que, no âmbito interno, ela é promovida pelas elites (jurídicas, econômicas, etc.) e se coloca como movimento antipolítico e fortemente atrelado à tentativa de novamente garantir a difusão do neoliberalismo, do desmonte do Estado e da venda dos patrimônios nacionais a empresas transnacionais de países europeus, norte-americanos e orientais. A classe média e a própria intelectualidade latino-americana sempre havia visto como fundamental o combate à corrupção para que os países deixem os vícios terceiro-mundistas e se tornem países confiáveis, transparentes e menos arriscados à negócios e transações internacionais. O processo de “limpeza” da política – e da sociedade – difundido no Brasil pelas megaoperações de combate à corrupção (com o efeito Big Brother proporcionado pelos grandes veículos de comunicação), se ampliou no Brasil, tendo reflexos recentemente na Argentina e em outros países da região, recentemente se aprofundando na África, com a destituição recente do presidente sul-africano por escândalo de corrupção.
A agenda da transparência, da accountability e do combate à corrupção política, contudo, tem raízes no próprio Consenso de Washington e nas pautas do FMI, Banco Mundial, OCDE e outras agências internacionais. Nos anos 1980 e 1990, a ideia de diminuição do Estado já vinha vinculada à noção de que os países periféricos enfrentavam corrupção generalizada, o que servia de argumento para legitimar desmontes de diversões frações da esfera pública (mesmo programas sociais). Embora ignorada momentaneamente por acadêmicos das áreas das ciências sócias, ciência política e relações internacionais, há tempos no Leste Europeu os acadêmicos alertavam sobre as falsas intenções e motivações de atores externos sobre países da região sob o pretexto de combate à corrupção. Nesta região, boa parte do processo de integração à União Europeia e à OTAN envolveu uma tentativa de adaptação aos costumes, práticas e boa governança supostamente existentes no mundo Norte-Ocidental.
A origem da pauta da corrupção abre um campo enorme de pesquisa para diferentes áreas das ciências humanas e sociais na América Latina e muitas questões ainda estão pendentes, sobretudo a origem interna ou internacional dessa agenda. Se sabe que a elite jurídica dos países latino-americanos é fortemente influenciada por escolas, abordagens e centros de pesquisa e ensino dos EUA e países europeus. Mesmo agências vinculadas diretamente ao governo norte-americano têm atuação firmada em países latino-americanos. Os protestos de junho de 2013 no Brasil, antecedidos pelo golpe paraguaio que destituiu o presidente Lugo rapidamente, iniciaram com pautas direcionadas à melhoria de serviços públicos municipais e, tão logo a mídia começou a garantir a cobertura, os protestos passaram a ser direcionados contra a corrupção e ao governo federal.
O que importa desta agenda não é se é importante ou não para o desenvolvimento e modernização dos países do Sul, mas como está sendo utilizada e direcionada pelos grupos de interesse de modo a derrubar governos, direcionar o curso político nesses países e gerar instabilidade institucional, caos e diminuição da confiança estrangeira nos atores, empresas e governos. Se a pauta está servindo para o desmonte dos Estados, para generalizar crise econômica e financeira, minimizar a projeção externa de países que anteriormente eram atores importantes na arena internacional, então ela é hegemônica e serve aos interesses das elites transnacionais. Mais do que isso, o combate a corrupção desvia o foco principal de atenção dos países periféricos, que deveria ser a fome, a pobreza e a miséria que ainda assolam boa parte da América Latina, África e Ásia. Para evitar que a pauta da corrupção se torne novo instrumento de dominação de classe e dominação de povos do Sul Global, é urgente que os movimentos sociais e a intelectualidade comece a desenvolver pontos de vista e perspectivas que garantam um recorte de classe e um recorte Norte-Sul para as agendas de meio-ambiente, direitos humanos, democracia, reforma do Estado e – no momento atual – combate à corrupção.
*Professor de Relações Internacionais na PUC-Minas e Doutorando em Relações Internacionais no Programa San Tiago Dantas