Em dezembro de 1976, a cena punk inglesa começava a chamar a atenção da mídia, com os primeiros discos saindo aos poucos e bandas como os Sex Pistols e o Clash formando legiões de seguidores. As apresentações ao vivo, porém, eram esporádicas e descontínuas, sendo agendadas, quando possível, em lugares que muitas vezes não simpatizavam nem com o movimento nem com seus integrantes. No final daquele mês abriria o Roxy, na região de Convent Garden, em Londres, que entraria para a história como o primeiro clube no Reino Unido a ter uma programação inteiramente dedicada a esse novo som.
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Um dos donos do lugar, Andrew Czezowski, também era contador na loja de roupas Acme Atracctions, um dos principais pontos de encontro dos punks, junto com a Sex de Malcom Mclaren, localizada um pouco abaixo na mesma King´s Road. Precisando de alguém para discotecar no intervalo entre os shows, Czezowski convidou o balconista da loja, um rastafári chamado Don Letts, para ser o DJ residente da casa. “Eu comecei a trabalhar na Acme Atracctions por volta de 1975, antes do punk rock explodir. Nós vendíamos roupas nostálgicas dos anos 50 e 60, coisas assim. Mas na loja eu tocava música, tocava reggae o tempo todo”, conta Letts.
Quando foi chamado para tocar no Roxy, ele conta que “nunca tinha sido DJ na vida. Como a cena punk era tão nova, não havia muitos discos ingleses de punk para tocar. Então tocava o que eu gostava, que era dub e reggae. Para a minha sorte, os punks gostaram também”. A trilha sonora do lugar, com exceção das apresentações ao vivo, acabou sendo composta inteiramente por música jamaicana, que ao mesmo tempo em que ajudaria a expandir os horizontes musicais dos freqüentadores do lugar, teria uma grande influência na cena punk inglesa.
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O Clash tocando um clássico do reggae, “Police and Thieves”, de Junior Murvin
Nas horas vagas, Letts começou a filmar cenas das apresentações e dos freqüentadores do lugar com uma câmera super-8. Quase por acidente, foi juntando material suficiente para formar um documentário, que acabou sendo lançado em 1978 com o nome de “Punk Rock Movie”. Seria o início de uma longa carreira como documentarista e cineasta, que 35 anos depois acabou por trazer Letts ao Brasil como convidado da quarta edição do festival de documentários In-Edit Brasil.
Além de “Punk Rock Movie”, Letts veio acompanhar a exibição no país de outros três longas: um sobre o Clash; outro sobre o fotógrafo Bob Gruen; e aquele que talvez seja seu melhor filme, “Punk: Atitude” uma mistura de história e mapeamento psicológico do punk rock. “Fiz o filme porque todos focam em 75, 76, 77, e acham que o punk começou e acabou. Isso é muito ruim, é perigoso, faz as pessoas pensarem que o punk foi essa coisa estranha que aconteceu na época. Mas não, é algo vivo. Se você é jovem, corajoso e tem uma boa idéia, ele [o punk] pode fazer algo por você agora”.
A vinda de Letts ocorreu logo após o Jubileu de Diamante da rainha no Reino Unido. Coincidentemente, durante outro jubileu, em maio de 77, os Sex Pistols lançaram “God Save The Queen”, que causou polêmica por sua letra explicitamente antimonarquista e marcou o auge da popularidade do punk. As recentes festividades contaram com apresentações de artistas como Paul McCartney e Elton John, mas foram vistas poucas posições contrárias e quase nenhuma crítica pública de artistas sobre o evento. Letts, que sempre foi contra a monarquia, acha que “os ingleses são muito bons em distrair você dos problemas reais. Pra mim, o jubileu é uma distração da realidade da nossa vida cotidiana. Nessa semana todos ficam ‘dããã, a rainha’. No ano que vem, todos têm de pagar por isso”.
Clipe original de “God Save The Queen”, dos Sex Pistols
Pode ser um sinal de que as pessoas estão menos críticas hoje em dia? “Eu não posso falar pelo Brasil, mas na Inglaterra e nos EUA, acho que os jovens são bem menos politizados do que éramos nos anos 70. Por que é assim? Não sei, talvez seja porque eles têm demais. No século XXI, os jovens têm tantas escolhas que não parecem ficar com raiva a respeito de muita coisa. Muita gente nova tem valores muito conservadores, é como se o punk rock nunca tivesse acontecido”, alfineta.
É curioso ver como Letts, ex-balconista de loja de roupas, nunca deixou de ressaltar a importância da politização na música, e diz se considerar prova viva de como ela pode afetar a vida das pessoas. “A música se tornou uma trilha sonora para o consumismo passivo. Eu acho que as pessoas se esquecem de que ela pode ser uma ferramenta para mudança social. Não acho que você deve estar sempre pregando, mas é preciso um balanço”.
Criado ao som do sound system (equivalente ao trio elétrico na Inglaterra, que no caso tocava música jamaicana) do seu pai, Letts é alguém que dificilmente descartaria a importância da música como diversão, mas acredita que entretenimento e política não são excludentes: “Você não pode passar sua vida toda dançando na pista. Quando a música para, você tem que sair e encarar a realidade. Se a música não está te dando nenhuma informação, você não está equipado para lidar com a vida”.
Apesar de ter ouvido música jamaicana a vida toda, foi só através de suas conexões com o punk que Letts acabou conhecendo a Jamaica. No começo de 1978, logo após a separação do Sex Pistols, o milionário Richard Branson, dono da Virgin Records, mandou Johnny Rotten (vocalista da banda) para o país caribenho, onde ele iria contratar artistas de reggae para um novo selo que estava sendo inaugurado. Rotten, fã do gênero musical, convidou o amigo Letts para acompanhá-lo. “A primeira pessoa a me levar para a Jamaica foi Johnny Rotten. Eu era amigo de John, sou negro, e ele deve ter pensado ‘ah, ele deve conhecer a Jamaica’, mas eu nunca tinha estado lá. Foi uma das viagens mais extraordinárias da minha vida. Todos os artistas jamaicanos, com exceção de Bob Marley, Burning Spear, Bunny Wailer e Peter Tosh, vieram até o hotel e busca de um contrato. E eu e John ainda éramos jovens o suficiente para termos heróis”.
O reggae jamaicano dos anos 70 é bastante identificado com a postura militante e crítica dos rastafáris, que rejeitavam de maneira veemente os valores ocidentais de consumismo e competitividade. Gradualmente, o estilo foi dando lugar a outros gêneros nas décadas seguintes, como ragga e dancehall, que em sua maioria deixavam de lado a antiga postura para celebrar sexo e violência. “As mudanças na música jamaicana são um pouco perturbadoras para mim. Quando eles não tinham acesso a toda essa tecnologia, a música era muito mais interessante. Muitos dos novos artistas são homofóbicos, sexistas, coisas que eu não apoio. Houve uma mudança na cultura das drogas também. No final dos anos 90, uma quantidade muito maior de cocaína começou a entrar na ilha, e isso afetou o som”, diz Letts.
Nem por isso ele deixa de acompanhar a música que continua sendo produzida na ilha: “Nós devemos ter cuidado, você nunca deve descartar a Jamaica. Nesse momento acho que a música está num estado de fluxo, de transição”. Ao contrário de tantos punks saudosistas, Letts não ficou preso em 77, e um bom exemplo disso é o programa de rádio semanal que ele comanda na BBC 6, onde é possível ouvir uma mescla de diversos estilos de diferentes épocas, sempre misturando coisas antigas com outras recém-lançadas.
O filho de Letts é DJ de dubstep, um dos novos estilos de música urbana vindos da Inglaterra que mais vem chamando atenção. Ele coloca o gênero como uma espécie de equivalente atual do que ele tocava nos anos 70: “obviamente eu adoro dubstep, porque faz parte de uma cultura tradicional jamaicana de graves. Os graves são uma linguagem que diz muito para mim. Meu pai tinha um sound system, eu fui um DJ, então é uma grande honra para mim ver meu filho ser parte dessa tradição”.
Digital Mystkz estão entre os artistas de dubstep favoritos de Don Letts
Histórias de xenofobia e o descontentamento de políticos de direita com o aumento de imigrantes nos países europeus preocupam Letts. Como filho de imigrantes jamaicanos criado na Inglaterra, ele afirma que durante todos esses anos a situação não mudou muito: “Se você vai para Londres, há uma mistura multicultural muito interessante e desse multiculturalismo sai muita criatividade. Mas isso é Londres, no resto da Inglaterra tudo parece ser como nos anos 50, ainda há muito racismo pelo país. Em lugares como Bristol e Manchester há uma mistura multicultural interessante, mas nos resto do país ainda há muitos problemas”.
Quando perguntado sobre o legado do punk nos dias de hoje, Letts afirma que “as idéias, a coisa toda sobre o DIY (do it yourself, sigla usada para definir o lema de “faça você mesmo”) é mais relevante agora do que nunca, especialmente com a economia mundial. A idéia de transformar um problema numa habilidade é uma coisa muito punk rock”.
O maior erro de alguns punks veteranos e fãs radicais do estilo é achar que essas idéias estão restritas ao formato da música tal como ela era em 1977 e, pior que isso, acreditar que ela deve ser mantida assim. Sobre isso, Letts diz que “Na verdade acho que não precisamos de mais músicos. A música ocidental é o último lugar para se encontrar o punk rock. As pessoas não entendem que não é só sobre música. Não era só um corte de cabelo e uma guitarra, era muito mais do que isso. É uma atitude, e é por isso que teve um legado tão duradouro”.
Além de atitude, outra palavra usada por Letts é cultura, algo que ele parece ver como uma tábua de salvação. Sobre sua geração, ele afirma: “A Igreja não nos uniu, a política não nos uniu, a escola não nos uniu. A cultura fez isso. Eu acho que a compreensão da cultura e seu papel em unir as pessoas é muito importante.” E se depender dele vai continuar sendo.