Atualizada às 20h49
Há pouco mais de meia década, o Congresso argentino aprovou a LSCA (Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual), que ficou conhecida como Lei de Meios. Durante quatro anos, quatro artigos da norma – os que tinham relação com a concentração da propriedade dos meios de comunicação – foram questionados judicialmente pelo Grupo Clarín. Em 29 de outubro de 2013, dois dias depois de eleições legislativas, a Corte Suprema decidiu que a lei deveria ser integralmente aplicada.
A partir daquela manhã, o governo já não poderia adiar os processos de adequação à norma dos grupos de comunicação concentrados, o que havia feito até então com o argumento de que o Grupo Clarín estaria em vantagem enquanto estivesse protegido do mesmo destino por uma medida cautelar. Entre apoiadores da LSCA, houve esperança de que, com o fim da judicialização, começasse uma aplicação efetiva de todos os outros artigos – o que ainda não aconteceu.
No entanto, após o anúncio, no último dia 8 de outubro, de que o Clarín deveria se desfazer compulsoriamente de licenças que excedessem o limite da lei (sob a justificativa de que os novos concessionários eram sócios em empresas no exterior), a disputa legal corre o risco de ser reaberta e pode adiar ainda mais a efetiva aplicação da lei.
Reprodução
Capas do Clarín sobre a Lei de Meios: aplicação plena ainda não foi feita
Para Santiago Marino, coordenador acadêmico do mestrado em Indústrias Culturais da Universidade de Quilmes e especialista em regulação de meios de comunicação, houve avanços no último ano na distribuição de licenças e a vigência plena da lei fortaleceu a institucionalidade dos organismos vinculados à aplicação dela. Porém, ele acredita que a adequação forçada do Grupo Clarín à lei pode mudar o cenário.
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“Se o Clarín obtiver uma medida cautelar que evite a aplicação da lei, o governo vai ter uma desculpa para não aplicar a norma, mas volta a ter um adversário para seu processo político. E o Clarín vai seguir sem se submeter à lei, que é o que deveria acontecer”, avalia Marino.
Em comunicado divulgado após o anúncio da adequação compulsória à lei, o Grupo Clarín afirmou que iria recorrer “a todas as instâncias cabíveis para resguardar seus direitos” e que o plano que havia apresentado “se ajusta perfeitamente à lei”. O Grupo também acusa o governo de persegui-lo e de aplicar a lei de forma “seletiva e discriminatória”.
Diferença de tratamento
A possibilidade de reabertura do processo judicial está diretamente relacionada à diferença de tratamento com que o governo lida com as adequações do Grupo Clarín e de outros grupos de comunicação concentrados. Santiago lembra que 37 planos de adequação foram aceitos, enquanto o do Clarín foi rejeitado e outros dois sequer foram analisados até hoje.
Uma das pendências da AFSCA (Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual) é a análise do plano do grupo Telefónica. “Possui licenças de TV aberta e é operador de telecomunicações, o que a lei proíbe. É uma empresa de capitais espanhóis e, na Argentina, os únicos capitais estrangeiros que podem investir mais de 30% em meios de comunicação são os dos Estados Unidos. A Telefónica ficou com 50% da Entel [antiga Empresa Nacional de Telecomunicações], e, pelo contrato, estaria proibida de ser operadora de radiodifusão”, pontua Marino.
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“Os principais planos de adequação aprovados são tão discutíveis quanto o do Clarín, mas o Clarín foi o único grupo ao que a AFSCA puniu com a adequação forçada. O tratamento desigual é muito óbvio, o que aumenta o risco de judicialização”, aponta Marino.
Em entrevista ao jornal Página/12, em novembro de 2012, o presidente da AFSCA, Martín Sabatella, diferenciou a Telefónica Argentina do canal de TV Telefé (Televisión Federal SA), e afirmou que as empresas não possuem ações uma da outra. O mesmo argumento foi usado pelo gerente de relações institucionais do canal, Heber Martínez, em entrevista ao jornal Perfil, em dezembro do mesmo ano.
Reprodução/YouTube/AFSCA
Martín Sabatella, presidente da AFSCA: caso da Telefónica é diferente do que aconteceu com o Clarín
No entanto, depois de sucessivas operações comerciais, ambas as empresas passaram a depender da Telefónica Espanha, o que coloca o grupo como controlador indireto do canal desde o ano 2000. A página institucional da Telefé, que trazia essa informação, foi modificada no dia seguinte à publicação da entrevista de Sabatella.
Na mesma entrevista ao Página/12, Sabatella afirmou que a Telefé se constituiu como empresa antes da promulgação da lei que limita a 30% o investimento de capitais estrangeiros, motivo pelo qual estaria isenta de cumprir com esse requisito.
Meios alternativos
“O mapa de meios de comunicação hoje é praticamente igual ao de um ano atrás”, afirma Fabiana Arencibia, jornalista e integrante da RNMA (Rede Nacional de Meios Alternativos). A Rede pede a elaboração de um Plano Técnico, previsto pela lei para seis meses depois de a aprovação, mas que não foi realizado até agora.
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O Plano permitiria à AFSCA formular um mapa de meios de comunicação no país e, com isso, reservar 33% do espectro, como previsto pela lei, aos meios de comunicação sem fins lucrativos. O mapa também poderia determinar onde existe maior concentração – as chamadas zonas de conflito – e que tipo de políticas aplicar nessas situações.
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“O Plano Técnico é político também, porque com essa informação se faz política de estímulo ao desenvolvimento de novos meios de comunicação”, aponta Arencibia. No entanto, a jornalista se queixa de que houve poucos chamados a concurso para frequências de baixa potência, para que meios alternativos possam ocupar o espectro radioelétrico – objeto de regulação da LSCA. “Sem concurso ou autorização direta, tecnicamente não existimos para o Estado. E isso nos impede de ter acesso a subsídios ou editais de fomento”, explica.
A autorização direta é dada a meios de baixa potência que atuem em zonas de alta vulnerabilidade, onde não haja conflito e haja espectro. Pela lei, o Estado nacional, os estados, os municípios, as universidades federais, as escolas federais, a Igreja Católica e os povos originários também seriam contemplados pela adjudicação direta de licenças. Arencibia reconhece que, para esse setor, houve avanços com a LSCA, mas reclama que o chamado a concursos para licenças de outro tipo não alteraram significativamente a situação dos meios nucleados na RNMA.
Vitor Teixeira/Opera Mundi
“A lei veio para multiplicar vozes. Para nós, também é preciso multiplicar os discursos. Nossos meios são os únicos que podem realmente garantir a multiplicidade de discursos e uma verdadeira democratização, por fora dos monopólios privados e da repetição do discurso governamental”, defende Arencibia.
Internet
O pouco avanço em relação aos meios alternativos não é a única preocupação. Marino reconhece que, apesar da norma que regula a propriedade dos meios de comunicação audiovisuais, a ausência da regulação da internet na agenda política pode gerar novas concentrações no futuro. “Sem uma norma que estabeleça limites para a concentração de propriedade no setor de telecomunicações, o risco é ainda maior, porque a concentração é muito mais marcada. Estamos falando de oligopólios.”
Novamente, a falta de atenção ao grupo Telefónica pode ser responsável por um novo cenário de concentração. “O mercado está se adaptando ao processo convergente e a Telefónica seria um ator central. Digamos que o governo nos surpreenda e obrigue o grupo a se desprender de um de seus maiores canais. Ainda assim, teria a metade da infraestrutura de telefonia básica e seria um dos principais operadores de telecomunicação”, assinala Marino.
Ele ressalta também que, para além da concentração, o serviço seria afetado. “Seria um problema se tivéssemos que escolher entre uma internet com acesso aberto muito lenta, congestionada e de baixa qualidade ou um serviço caro, veloz e de alta qualidade. Aí aprofundaríamos, mais uma vez, as diferenças econômicas”, conclui.