“Tanta gente sem casa, tanta casa sem gente”. O slogan que inundou muros e redes sociais é o retrato dos grandes centros urbanos de Portugal, especialmente em Lisboa e no Porto. O problema crônico da moradia será um dos grandes desafios dos futuros prefeitos escolhidos no próximo domingo (29/09). Não pesa a favor deles nem o cenário político – apenas 9 em cada 100 portugueses confiam nos partidos políticos – nem o econômico. Eles governarão num país com 16,4% de desemprego e sob as rédeas curtas dos credores internacionais, que emprestaram a Portugal 78 bilhões de euros em 2011 – e os querem de volta.
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A especulação imobiliária e o crédito fácil foram os principais responsáveis por uma situação paradoxal: ao longo de pelo menos trinta anos, foram construídas mais moradias que o número de famílias residentes no país. O boom imobiliário gerou um superávit habitacional e o endividamento da população. Hoje, o peso do crédito à habitação chega a 89% da renda familiar. Outro efeito do surto construtivo foi o prejuízo ao patrimônio histórico português, com edifícios antigos ainda mais abandonados e degradados. Os números falam por si: há mais de 155 mil prédios em mau estado de conservação no país, muitos dos quais formam uma valiosa herança arquitetônica.
António Costa, candidato socialista à segunda reeleição na capital, lidera as sondagens, seguido de Fernando Seara, do Partido Social-Democrata (PSD, centro-direita), o mesmo do atual primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho. A prefeitura ostenta projetos de peso na área da habitação, como a renovação da Mouraria, bairro de origem árabe considerado o berço do fado, por meio da melhoria da malha urbana, do fomento ao turismo e ao comércio local. Porém, seus críticos o acusam de fazer vista grossa aos especuladores e à degradação do patrimônio histórico. O concorrente Seara propõe uma chamada “intervenção urbana profunda”, cujas medidas incluem desde demolições até a criação de um fundo estatal para financiar a restauração.
Belarmino Fragoso/Opera Mundi
Porto é visto como exemplo de desburocratização no restauro a prédios
No Porto, o panorama eleitoral é disputado por três candidatos: Luís Filipe Menezes (PSD), claro favorito, o socialista Manuel Pizarro e o independente Rui Moreira. O problema da moradia e da degradação do patrimônio histórico também é expressivo e aparece no programa de governo de todos os candidatos. Apesar disso, houve na cidade muitos avanços na última década, graças principalmente às parcerias público-privadas.
O mercado da degradação
A imagem da arquitetura portuguesa, com prédios baixos, estruturas de madeira, azulejos azuis e cantaria na fachada e nas janelas, que tanto alimentou fantasias das elites brasileiras, está sob séria ameaça. Quem caminhar pelos centros históricos de Lisboa e Porto terá a sensação de andar entre ruínas de outro tempo. Prédios do século XIX e início do XX destelhados, pichados, sem janelas, portas arrombadas, azulejos partidos, paredes quebradas.
Marana Borges/Opera Mundi
Na capital portuguesa, 15% dos edifícios estão com problemas de conservação
Em Lisboa, mais de um em cada dez imóveis está degradado ou inabitável. Muitos deles pertencem ao poder público. Sem verbas para reabilitá-los, a prefeitura os vende ou faz concessões à iniciativa privada para reformá-los e alugá-los. Segundo o atual prefeito, são necessários 8 bilhões de euros (ou 24 bilhões de reais) para solucionar esse problema. Na região metropolitana do Porto, o número de edifícios em mau estado ultrapassa os 12 mil, segundo o censo de 2011. Apenas no centro histórico há mais de 3 mil prédios em decadência, pese o fato de a zona estar classificada como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco.
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O irônico é que, muitas vezes, são os próprios proprietários que deixam os imóveis degradarem ou os abrem para que os depredem, relatam moradores. Nas últimas décadas, seus donos passaram de pessoas físicas a grandes empresas, imobiliárias ou fundos imobiliários de bancos. Eles compram a baixo preço prédios já em condições de penúria. Depois, recorrem a uma estratégia denunciada por alguns ativistas do setor, mas negada pelo poder público: ajudam a degradá-lo mais, se for preciso inclusive provocando incêndios, para o governo forçar a demolição.
Depois de demolido o edifício, o caminho está livre para construções novas. Com mais apartamentos e andares, materiais de baixo custo e – essencial – garagem. Tudo o que falta aos antigos prédios. Paulo Ferrero, fundador do Movimento Fórum Lisboa Cidadania, desabafa: “Não há defensores do nosso patrimônio, só agressores”. O projeto do qual participa surgiu como um blog em 2005 para impedir a demolição da residência onde um dos expoentes do romantismo português, Almeida Garret, passou os últimos anos de vida. A casa era propriedade do então ministro da economia. Causa perdida. O projeto, entretando, continuou e hoje é referência no debate público sobre problemas urbanos de Lisboa.
Alto custo para moradores
Rita Miranda, de 29 anos, realizou em 2011 o sonho de ter uma casa própria. Junto com o namorado, comprou em Lisboa um apartamento num edifício de 1910. O preço era convidativo, embora o imóvel necessitasse, à primeira vista, de pequenas reformas. A jovem portuguesa, apaixonada pela arquitetura tradicional, em seguida especializou-se em restauração. E foi então, entre o conhecimento das aulas e o testemunho constante do aumento das rachaduras nas paredes do prédio e infiltrações do teto, que começou o pesadelo. “Descobri que nos anos 70 o prédio foi evacuado por risco de cair”, lamenta Rita. As paredes estão débeis e parte das estruturas de madeira, apodrecida.
Reformar o prédio todo custará caro, e infelizmente os vizinhos não parecem animados com a ideia, nem conscientes do risco que representa postergar a solução. Rita, mesmo imersa em gastos que já somam mais de 12 mil euros (ou 36 mil reais) e sem o apoio dos condôminos, não tem dúvidas das vantagens da restauração frente às construções novas: “Gera menos resíduos, consome menos energia e matérias-primas e preserva o patrimônio cultural”.
Pela lei portuguesa, os edifícios devem ter manutenção a cada oito anos, mas poucas vezes ela é cumprida. Muitos moradores interessados em reabilitar deparam-se com o alto custo e exigências legais difíceis de cumprir em prédios históricos – como a construção de saídas de emergência. Na opinião de Paulo Ferrero, o custo elevado explica-se pelo baixo número de empresas especializadas na área, reflexo do pouco interesse e incentivo dado à reabilitação.
Saída da crise?
Se restaurar pode ser ainda difícil para os moradores, algumas medidas do poder público visam dinamizar o setor ao simplificar burocracia e conceder benefícios fiscais. O Porto é hoje um exemplo de destaque, apesar do (longo) caminho a percorrer. A zona metropolitana tem o maior índice de prédios degradados, mas na cidade o número de edifícios sem necessidade de reparação cresceu 44% em dez anos, segundo dados oficiais fornecidos a Opera Mundi.
Parte desse sucesso vem da atuação da empresa pública Porto Vivo, também chamada de Sociedade de Reabilitação Urbana do Porto, criada em 2004 para fomentar a restauração urbana. Em casos extremos, a empresa expropria prédios em mau estado para reformá-los e dirigi-los a programas de moradia social.
Nada disso seria possível, afirma a porta-voz da empresa, sem a parceria com a iniciativa privada. Dos 600 milhões de euros investidos entre 2005 e 2013, menos de 1% era público. Em outras palavras, os privados investem 11 vezes mais que a prefeitura. Num país afogado por uma dívida pública de quase 130% do Produto Interno Bruto, aliar-se aos privados tem sido visto como a melhor e mais barata saída. Atualmente há 13 empresas públicas do gênero em Portugal.
“A reabilitação urbana se afirma já como uma alternativa segura para ajudar a retomada da economia, com um claro impacto positivo sobre outros setores”, defende Ana Paula Delgado, da Porto Vivo. Ela comemora a subida dos pedidos de licenciamento para reabilitação, que hoje representam 93% do total na cidade. O restauro é visto como a bola da vez, criador de um círculo virtuoso capaz de impulsionar uma das únicas áreas que tem crescido com a crise – o turismo, especialmente estimulado por brasileiros.
Uma atitude mais cautelosa tem a arquiteta Adriana Floret, diretora da Associação Portuguesa para a Reabilitação Urbana e Proteção do Patrimônio. Segundo ela, é preciso analisar se tais dados impõem-se como tendência sustentável ou apenas um pico circunstancial. Também se deve verificar se eles correspondem a uma efetiva reabilitação urbana ou são casos – também comuns – em que o ocorre o reparo apenas na fachada, deixando o edifício ruindo por dentro.
Para Adriana, há um grande frenesi em relação à restauração como saída da crise: “Não há candidato que não tenha meia dúzia de propostas relacionadas com esta problemática”, aponta. Apesar da “evolução positiva nas mentalidades”, ressalta que é preciso cuidado. A jovem arquiteta Rita Miranda concorda: “Muitas restaurações, por aumentarem o valor do imóvel, acabam por expulsar as pessoas mais desfavorecidas dos edifícios. Não é o que queremos”.
O ânimo com a restauração foi inflamado por uma estimativa da Confederação Empresarial de Portugal mostrando que o setor tem potencial para gerar em 20 anos até 600 mil postos de trabalho – cerca de 10% da população ativa do país. Para restaurar todos os edifícios públicos e privados, seria preciso investir 150 bilhões de euros, equivalente a 90% do PIB português.