Em outubro do ano passado, universitários da África do Sul se organizaram no movimento #FeesMustFall (“as taxas devem cair”, em tradução livre), em protestos que se espalharam pelo país. O objetivo era impedir o aumento de até 11,5% no valor das inscrições das universidades públicas, projeto cancelado pelo próprio presidente sul-africano, Jacob Zuma, após negociação com a liderança do movimento. A vitória, no entanto, não foi suficiente para aplacar os estudantes, que agora exigem a gratuidade das taxas. Universidades tentam negociar soluções intermediárias, como a extensão do prazo de pagamento, mas os estudantes organizados não aceitaram a proposta e prometem renovar os protestos em 2016.
“Sou bolsista, simplesmente não tenho dinheiro para pagar por nenhuma taxa da faculdade”, disse em entrevista a Opera Mundi Mogabale Sello, aluno do segundo ano de Ciências Políticas na North-West University, uma das maiores universidades do país, e um dos integrantes do movimento. “Queremos educação gratuita de qualidade para todos. Há muitos estudantes com grande potencial que não podem estudar porque têm problemas financeiros”, argumenta o estudante de 23 anos.
Na África do Sul, as taxas das universidades dependem do curso e da instituição, podendo variar entre 30 e 50 mil randes, cerca de 7 e 10 mil reais por ano. Normalmente os cursos de graduação duram três anos, o que soma aproximadamente 120 mil randes ou 30 mil reais por um diploma. Não existe salário mínimo nacional e os trabalhadores negociam a base de acordo com a profissão, numa média mínima de cerca de 2 ou 3 mil randes mensais (440 ou 730 reais) no setor privado. Ou seja, sem o auxílio de bolsas de estudos, jovens de famílias mais pobres não podem frequentar as universidades.
Wikimedia Commons
Marcha do movimento #FeesMustFall na Universidade da Cidade do Cabo em outubro de 2015
O movimento estudantil insiste que é possível oferecer educação superior gratuita e a questão é debatida por especialistas na mídia nacional. O governo sul-africano investe 0,8% do PIB do país nas universidades, porcentagem abaixo da média mundial. Defensores da gratuidade das universidades argumentam que 2,5% seria uma parcela apropriada e dentro das possibilidades econômicas da África do Sul.
Enquanto isso, alguns alunos tentam driblar o problema pedindo doações para as matrículas. O Conselho Representativo Estudantil da Universidade de Witwatersrand (SRC) afirma que já foram arrecadados 4,4 milhões de randes, que equivalem a mais de 1 milhão de reais, para ajudar com as inscrições, mas argumenta que esta é apenas uma solução temporária: “A captação de recursos administra apenas o sintoma de um sistema estruturalmente excludente. A doação para os estudantes não é a solução definitiva para o problema. Precisamos questionar e desafiar o sistema em si”, afirmou em comunicado o SRC.
Enquanto as universidades de Pretória e Johannesburgo, as maiores cidades do país, continuam batendo de frente com o movimento estudantil, outras como a University of Western Cape, na Cidade do Cabo, já cederam, pelo menos por este ano. Alunos economicamente desfavorecidos e bolsistas não precisam pagar as taxas de 2016. “Nossa universidade garante que nenhum estudante será excluído da educação superior por dificuldades financeiras”, afirmou por e-mail um porta-voz da instituição.
Crise complexa na educação
No entanto, tudo indica que o pagamento das matrículas seja apenas a ponta do iceberg. Segundo análise do Departamento de Educação Superior e Formação da África do Sul, apenas 15% dos alunos inscritos nas 23 universidades públicas do país saem com um diploma na mão. Mais da metade dos estudantes abandonam o curso logo no primeiro ano. Uma das razões para tamanha evasão é a difícil situação financeira de muitos alunos, que não são capazes de se manter ao longo do ano e acabam desistindo do curso.
NULL
NULL
Rajendra Chetty, chefe do Departamento de Pesquisas da Faculdade de Educação e Ciências Sociais na Cape Peninsula University of Technology, afirma que os protestos estudantis são um sintoma de um problema social mais profundo: “O fato de serem os pobres e as classes trabalhadoras a origem do movimento é a indicação clara de uma luta de classes. Isto é ainda mais reforçado pelo fato da grande maioria dos manifestantes serem negros. Etnia e classe estão no centro do sistema universitário excludente atual da África do Sul”, denuncia o professor.
Wikimedia Commons
Estudantes levantam as mãos em sinal de paz durante protesto do #FeesMustFall em outubro de 2015
Os estudantes de origem mais pobre chegariam à universidade em desvantagem não apenas pela dificuldade em se manter financeiramente, mas também por terem uma base educacional menos sólida. Além do mais, os problemas sociais do país andam de mãos dadas com a questão racial – o apartheid acabou há apenas 25 anos, deixando uma pesada herança de segregação e desigualdade.
Ainda hoje existe uma concentração maior de negros em universidades de menos prestígio, enquanto os brancos ocupam os assentos das melhores instituições, que até 1994 eram reservadas exclusivamente para eles por lei. Não por coincidência, estas têm as taxas de inscrição mais elevadas. “O modo de funcionamento do sistema educacional sul-africano mantém a estrutura de classe da sociedade do apartheid. É apenas lógico que universidades com taxas maiores possam oferecer uma maior qualidade de educação para estudantes da classe média”, explica Chetty.
O movimento estudantil tem consciência desta luta de classes e parece ter assumido a identidade negra em seus protestos. No manifesto oficial do #FeesMustFall de Johannesburgo, a organização se define “filosófica e politicamente como um movimento de consciência negra, que procura a compreensão da condição negra no espaço universitário”.
Por outro lado, grupos de supremacistas brancos também tornaram os protestos uma questão racial quando passaram a apoiar o movimento estudantil. Jornais locais denunciaram uma possível força branca por trás dos protestos, não em favor dos alunos, mas se apropriando de qualquer movimento que possa enfraquecer o presidente Zuma, a quem querem derrubar. Os estudantes não descartam a hipótese. “Tudo é política. Pode ser que isso seja verdade, mas não é o caso aqui na nossa universidade. Estamos apenas fazendo a nossa parte”, disse Mogabale.