A questão alimentar na Venezuela transformou-se nos últimos anos num dos principais campos de batalha entre o governo do presidente Hugo Chávez e a oposição, representada neste embate por setores produtivos e empresariais.
Chávez, que promete a conquista da auto-suficiência na produção e o acesso da população a uma alimentação adequada, acusa determinados produtores e distribuidores privados de especular com os alimentos a fim de sabotar o governo e obter lucros políticos. Os empresários negam e denunciam que as políticas governamentais de controle de preços e produção, assim como os elevados níveis de importação, estão destruindo o sistema produtivo nacional.
A última controvérsia ocorreu no mês passado, quando o governo apontou a escassez de arroz branco nos supermercados e armazéns e a presença, em seu lugar, de arroz pré-cozido ou aromatizado com diversos aditivos, como manobra de algumas empresas para driblar o controle de preços estipulado para produtos como o arroz branco. O governo determinou a inspeção de algumas usinas de beneficiamento de arroz e a intervenção em outras, entre elas uma fábrica da multinacional Cargill, que reconheceu ter violado normas estabelecidas pelo Estado para evitar a especulação e acabou expropriada.
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“É fundamental para o povo ter acesso aos alimentos, a um preço acessível e com qualidade”, disse ao Opera Mundi o vice-ministro de Circuitos Agropecuários e Agroalimentares do Ministério da Agricultura e Terras (MAT), Iván Gil, defendendo a campanha para reformular o sistema alimentar do país. Nos últimos dez anos, o governo implementou uma série de leis e regulações que, de acordo com as estatísticas oficiais, tiveram forte impacto positivo no setor da produção de alimentos, assim como nos mecanismos de distribuição e na capacidade de consumo da população.
Não é o que dizem certos setores produtivos, que se ressentem das políticas de Chávez de controle de preços e distribuição e aumento das importações. O governo precisa “criar condições mínimas para que os produtores possam produzir em paz”, reclamou o presidente da Federação Nacional de Criadores de Gado (Fedenaga), Genaro Méndez.
Contra o latifúndio
O primeiro sinal consistente da política alimentar do governo Chávez veio com a sanção, em novembro de 2001, da Lei de Terras e Desenvolvimento Agrário, que deu início à chamada “guerra contra o latifúndio”. A lei permite a intervenção do Estado em terras que estejam ociosas ou improdutivas e sua expropriação em favor de formas de propriedade social direta (sob controle de comunidades camponesas ou cooperativas agrícolas) ou indireta (administradas pelo Estado).
Na época, a entrada em vigor da lei – sancionada juntamente com várias outras importantes, como a Lei de Hidrocarburetos e a Lei de Pesca – causou profunda insatisfação entre os setores mais concentrados da economia, como o dos grandes proprietários e produtores agropecuários. A legislação marcou o início de um processo de reação opositora que culminou, poucos meses depois, no breve golpe de Estado de 11 de abril de 2002, que tirou Chávez do Palácio de Miraflores por um fim de semana.
O presidente derrotou os golpistas, mas a pressão patronal não cessou. No final daquele ano, um movimento da gerência da estatal petrolífera PDVSA paralisou a principal indústria do país durante 63 dias, causando prejuízos bilionários – na época, o Brasil vivia a transição entre os governos de FHC e Lula, que enviaram, conjuntamente, um navio petroleiro para a Venezuela. A ação foi acompanhada de uma greve geral convocada pelos setores patronais e empresariais de oposição ao governo, provocando a interrupção quase total do abastecimento de alimentos e outros produtos essenciais.
Intervenção na produção
Depois desse incidente, a estratégia oficial se concentrou em aumentar progressivamente a influência sobre a cadeia de produção e distribuição. O governo afirmou que o objetivo era favorecer o desenvolvimento da produção agroalimentar nacional até alcançar a auto-suficiência (ou seja, a soberania alimentar), ao mesmo tempo garantindo a disponibilidade no mercado, a preços acessíveis, dos produtos da cesta básica (a segurança alimentar).
O vice-ministro Gil afirmou que a missão é difícil porque a estrutura de produção de alimentos na Venezuela foi “sistematicamente desmontada” ao longo do século XX com o desenvolvimento da sociedade petrolífera. “A Venezuela deixou de ser um país rural com 5 milhões de habitantes em 1950, para chegar a 2010 como um país urbano de quase 30 milhões de habitantes”.
Para impulsionar a produção, a campanha oficial incluiu, entre outras medidas, favorecer o acesso dos camponeses à terra e a diversificação de técnicas produtivas, por meio da recuperação e expropriação de terras ociosas e a criação, capacitação e equipamento de comunidades agrárias denominadas Fundos Zamoranos; facilitar o acesso aos insumos (sementes, fertilizantes etc) e a incorporação de maquinário (sistemas de irrigação, colheitadeiras, tratores) por meio de subsídios e crédito barato a pequenos e médios produtores; incorporar milhares de bois para cruzar com o rebanho nacional e melhorar seu rendimento e produtividade; e investir no avanço da engenharia genética e da biologia molecular aplicadas à produção agropecuária.
Dados não batem
O governo divulga números contundentes, questionados pela oposição, para comprovar os avanços no setor ao longo da década chavista. Segundo o MAT, entre 1998 e 2008, houve aumento de 94% na produção nacional de arroz, de 205% no milho, 13% na cana-de-açúcar, 8% no café, 33% no leite de vaca, 26% na carne bovina, 77% na carne suína, 82% na carne de frango e 60% na produção de ovos. No mesmo período, a superfície total da colheita aumentou 45% e foi obtida a auto-suficiência de arroz, milho, café e carne de porco.
Os números oficiais diferem substancialmente dos divulgados pelo setor privado. Por exemplo, o consumo anual de carne bovina por pessoa, segundo a Fedenaga, foi de 19,32 quilos em 2008, ante 24 quilos citados pelo governo. De acordo com a entidade empresarial, a produção nacional de carne bovina chegou a 246 mil toneladas no ano passado, o que representa 45,6% do total consumido. O governo fala em mais de 511 mil toneladas, ou seja, 70% do consumo.
Citando a necessidade de facilitar a distribuição e o acesso aos alimentos, o governo fixou preços máximos para os componentes da cesta básica (arroz, azeite, farinha de milho, carne bovina, frango e leite, entre outros) e criou a Rede Mercal, para a comercialização de alimentos subsidiados em todo o país, e depois a PDVAL, outra rede de distribuição de produtos a preços controlados. O governo também organiza periodicamente feiras camponesas nos bairros populares, onde as pessoas podem comprar produtos frescos do campo a preços preferenciais.
Segundo indicadores do Instituto Nacional de Estatística (INE), 69,2% dos lares venezuelanos do extremo mais pobre da população e 45,3% dos lares das classes média e alta compram regularmente pelo menos um produto na Rede Mercal.
Mais importação, menos autonomia
Por outro lado, a Venezuela também tem importado uma grande quantidade de alimentos para atender à demanda, que cresceu em ritmo constante nos últimos anos, graças ao aumento da capacidade de consumo dos venezuelanos, principalmente dos setores populares.
Carlos Machado, especialista em agronegócios e professor universitário, afirma que o grande volume de importações permitido pelo governo é preocupante. Segundo ele, da sanção da lei de terras em 2001 até hoje, a importação anual de alimentos subiu de 1,3 bilhão de dólares para cerca de 7,5 bilhões.
Alguns setores da produção qualificam o volume de importações de alarmante e pedem a recuperação da autonomia. A Fedenaga, dos criadores de gado, chega a denunciar que a intervenção governamental está provocando a destruição do aparato produtivo nacional.
Méndez, o presidente da Fedenaga, afirmou ao Opera Mundi que as expropriações de fazendas e importações de alimentos, entre outras medidas, provocam a quebra de muitos produtores e afastam o próprio objetivo de alcançar a soberania alimentar. Ele criticou o controle do preço de muitos alimentos, pois “seus valores de venda não compensam nossos custos de produção e comercialização”.
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