No sábado (10/08), representantes das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e o governo encerraram a 12ª rodada das negociações que, esperam as partes, possam levar ao cessar-fogo e à paz, depois de mais de 50 anos de conflitos. Humberto de la Calle, ex-vice-presidente que chefia a delegação governista, declarou, animado, que “nunca chegamos tão longe”. Num comunicado conjunto, as duas representações anunciaram que já foi iniciada a fase de “construção de acordos” em relação a “direitos e garantias para o exercício da oposição política”, em especial para os grupos que devem se formar depois que o acordo final for assinado.
As conversações vêm se realizando em Havana, Cuba, para onde também se dirigiu o jornalista colombiano Hernando Calvo Ospina. Três dias antes do término da 12ª rodada, ele conseguiu um feito inédito: reuniu três líderes do Secretariado, a mais alta instância das FARC, para uma conversa sobre as negociações e suas dificuldades, a situação política na Colômbia e na América Latina, o apoio dos países vizinhos e até do governo e do Congresso dos Estados Unidos aos diálogos de paz.
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Os entrevistados aproveitaram a oportunidade para derrubar mitos criados pelo governo e pela mídia colombiana sobre seus reais objetivos e seu esforço no sentido de chegar a um acordo que garanta, segundo as FARC, justiça, democracia participativa, reforma agrária e uma Constituinte que reflita as demandas da população excluída das decisões e da vida política e econômica do país.
Eis a entrevista concedida a Hernando Calvo Ospina:
Eles acordam cedo também em Havana. “Nós nos levantamos às 4h30 para acordar os galos, a fim de que eles comecem a cantar”, explica um sorridente Ricardo Tellez, mais conhecido como “Rodrigo Granda”.
Tenho um compromisso às 7h para entrevistar três membros do Secretariado, a mais alta autoridade das FARC. Eles estão na vanguarda dos diálogos com a delegação do governo colombiano em Havana, Cuba. “Ivan Márquez” e “Pablo Catatumbo” também vêm à grande sala da casa em “El Laguito”, onde vivem os insurgentes. Granda acende um cigarro e bebe sua segunda xícara de café. Márquez tem um grande charuto cubano na mão, que guarda para saborear “depois do desjejum”. Catatumbo faz uma pausa no café e pergunta: “Se nós três vamos falar praticamente as mesmas coisas, por que você iria me entrevistar?”
É a primeira vez que um jornalista tem a oportunidade de conversar com esses três líderes guerrilheiros juntos.
Hernando Calvo Ospina – Comandantes, vocês vêm negociando a paz com a comissão do governo há sete meses. Ainda estão otimistas?
Ivan Márquez (IM) – O otimismo das FARC é determinado por nossa força de vontade em encontrar uma solução política para este confronto, que já dura quase 50 anos. O governo não foi capaz de nos derrotar militarmente, nem nós a ele, e por isso devemos buscar uma alternativa. Além disso, as circunstâncias, a realidade atual, tanto na Colômbia como no continente, indicam que é hora de encontrar uma solução pacífica. As guerras não são eternas. E é por isso que estamos fazendo todo o esforço necessário para chegar a um entendimento com o governo colombiano.
Como é a sensação de estar tão perto do inimigo?
IM – Apesar de dois grupos com visões muito diferentes, quase antagônicas, sentarem-se à mesma mesa, ambos precisam tolerar e compreender um ao outro. Numa negociação deve-se respeitar a outra parte, e o respeito deve ser mútuo. Há momentos em que as discussões são gélidas, fortes, mas logo as coisas voltam ao normal, porque sabemos que temos de chegar a um entendimento.
Negociações em plena guerra mobilizam os adversários. Parece-me que a coisa se torna mais emocional.
Você tem razão. O governo sempre tendeu a considerar a subjugação dos guerrilheiros um sinônimo de paz, em vez de fazer mudanças estruturais. A oligarquia quer a paz de graça. Estamos fazendo um grande esforço para que eles compreendam o que é preciso para criar uma atmosfera de paz, que pode ser alcançada através de transformações institucionais e políticas. Temos certeza de que o mais importante para a Colômbia é garantir uma verdadeira democracia, em que o povo soberano possa determinar políticas estratégicas, em que a opinião do povo seja levada em conta sem que ninguém venha a ser estigmatizado e assassinado.
Talvez eu esteja errado, mas acho que em vários momentos o presidente Juan Manuel Santos quis abandonar as negociações.
Rodrigo Granda (RG) – Não penso que ele queira se retirar do processo, mas parece sentir medo. É como se tivesse medo do ex-presidente Álvaro Uribe, membro do grupo dos criadores de gado, do poder narco-paramilitar e do setor obscuro das Forças Armadas. Santos recua apesar de ter o apoio de um setor significativo de empresários, banqueiros e Igrejas. Por exemplo, de acordo com relatórios que temos, Sarmiento Angulo, um dos homens mais poderosos da Colômbia, apoia o diálogo. Pesquisas dizem que 87% dos colombianos também querem a paz. A correlação de forças a favor da paz é indiscutível. Com Uribe fora do governo, ninguém mais fala em guerra. Mas parece que Santos não quer enfrentar os setores liderados por Uribe, quer lutar militarmente contra nós, e assume posições intransigentes que não permitem o desenvolvimento correto do diálogo. Sabemos que Uribe preparou 13 mil paramilitares, conhecidos extraoficialmente como “exército contra a restituição da terra”.Você acha que as Forças Armadas e Santos não sabem disso? É claro que sabem! É disso que Santos tem medo? Ou faz parte de um possível movimento contra nós?
Está claro que Uribe procura torpedear as negociações. Você acha que ele quer voltar para a presidência?
RG – Ele quer isso, sim, mas para se proteger, porque receia ser mandado para Miami por tráfico de drogas, ou para o Tribunal Penal Internacional, em Haia, por crimes contra a humanidade. Um fracasso nas negociações lhe seria favorável, porque aí ele poderia se apresentar ao país como a solução, mesmo não tendo sido capaz de resolver o “problema” da guerrilha durante os oito anos em que esteve no poder.
Pablo Catatumbo (PC) – Santos e Uribe têm a mesma ideia sobre as negociações: um processo de paz por submissão. São cegos, surdos e estão completamente errados, mas acho que são inteligentes. E é a partir daí que devemos continuar a negociar com sabedoria, para provar que eles estão enganados e que, assim, a guerra vai continuar.
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Nas declarações que vocês fizeram e nos documentos que li, as FARC pedem reformas nas instituições do Estado e a modernização do próprio Estado, o que pode ser contraditório para uma guerrilha comunista marxista-leninista.
IM – Não propomos mudanças radicais nas estruturas políticas e econômicas do Estado durante as negociações. Lá, não mencionamos o socialismo ou o comunismo. Tentamos criar condições para chegar a um entendimento com o governo, a um lugar onde os dois diferentes pontos de vista possam se encontrar. Sabemos que algumas organizações de esquerda, e não só na Colômbia, dizem que nos tornamos uma guerrilha reformista.
Fizemos propostas mínimas – como as centenas de propostas sobre o sistema agrário –, que, como você já disse, não levam a nada mais do que a uma modernização do campo colombiano. Mas a verdade é que lá ainda vivemos sob um regime feudal. Imagine que, mesmo assim, o governo coloca obstáculos.
O que as partes já assinaram?
RG – Algumas coisas, mas não se trata de assinaturas finais, porque nada está acordado até que tudo esteja acordado. Há pontos em que nós ainda não não concordamos, e os deixamos de lado para discuti-los mais tarde. Caso contrário, não haverá progresso.
Diálogos em Havana e fortes confrontos militares na Colômbia…
RG – O governo não quer o cessar-fogo, e assim ambas as partes têm de dialogar com o conflito em andamento. Vivemos confrontos pesados todos os dias, uma média de três a cada 24 horas. Temos realizado ações militares em larga escala, algo que eles escondem da nação. Entretanto, ambas as partes decidiram que os acontecimentos na Colômbia não afetarão as negociações.
Fizemos alguns gestos de paz, como a trégua unilateral do Natal, mas tivemos de nos defender dos ataques do Exército. E o governo escondeu dos colombianos que nesse mesmo período as transnacionais puderam aumentar seus lucros, por não sofrer nossa pressão. Um dos principais motivos para eles quererem acabar com as guerrilhas é que as transnacionais podem roubar o que bem entenderem sem nenhum problema.
Até agora, qual foi a principal intransigência do governo nas negociações?
IM – Sem dúvida alguma, a determinação do governo de não tocar nas terras dos grandes proprietários, a maioria das quais foi obtida por meio de desapropriações violentas. Eles têm medo. Seus representantes, quando falam conosco, alegam que isso poderia “desencadear os demônios do paramilitarismo”. Eles estão com medo dos criadores de gado e dos fazendeiros, não querem tocar nem mesmo em um terço dos 30 milhões de hectares que constituem suas propriedades, embora nem mesmo o gado as ocupe.
Agência Efe
Ivan Márquez (centro) é o principal porta-voz das FARC nos diálogos de paz de Havana
Mas não se faz reforma sem tocar na grande propriedade. Devem-se estabelecer limites para a propriedade da terra. O governo nem sequer pensou em taxar a posse da terra improdutiva. Quando propusemos a tributação dessas grandes propriedades, o governo respondeu que não há dados confiáveis, que ninguém sabe onde elas estão ou qual é sua extensão. Sugere fazer primeiro um recenseamento, o que pode levar até sete ou dez anos. O que eles não dizem é que, durante esse tempo, os proprietários podem alugar ou vender a terra para as transnacionais, pois é essa a estratégia deles.
Se o governo colombiano decidiu negociar com as FARC, foi porque Washington concordou. Você sabe que não se trata de exagero meu. Qual é a atitude política atual?
IM – Recentemente, 62 deputados dos Estados Unidos, incluindo dois republicanos, liderados por Jim McGovern, assinaram uma carta de apoio às negociações, enviada ao secretário de Estado, John Kerry. Congratulamo-nos com esse gesto altruísta. A Casa Branca e o Departamento de Estado também manifestaram apoio. Claro, sempre há interesses diferentes, porque o conflito colombiano produz dinheiro. A poderosa indústria de armas não quer perder esse negócio.
Vocês estão determinados a abandonar a luta armada. O que o governo colombiano deve oferecer para que isso aconteça? E em que vocês se transformarão?
RG – Durante as negociações iniciais, o governo declarou querer abrir as comportas para uma democracia real no país. Isso nos surpreendeu, porque nunca dissemos que a luta armada é a única maneira de mudar a Colômbia. Nós a adotamos, e ainda a mantemos, porque a violência fechou as portas da participação política. Se a possibilidade de fazer política legalmente se tornar real, sem a constante ameaça de assassinato, em igualdade de condições e com as reformas políticas que poderiam levar o país à democracia participativa, nós a apoiamos. Porque poderia ser criada uma correlação de forças favorável ao movimento revolucionário, que impulsione as mudanças radicais necessárias. Nós aceitamos esse desafio.
PC – É preciso construir um forte movimento de massas para impor mudanças, porque o establishment não oferece nada de graça. Essa é uma tarefa nossa esquerdistas e democratas. É importante criar um movimento popular poderoso que queira uma nova Colômbia. Esse é o desafio, e não é pequeno.
Mas, veja você, enquanto falamos nisso durante as conversas de paz, a repressão continua em todo o país. O governo não mudou nada em relação ao tratamento do protesto social. Os manifestantes são estigmatizados, e o governo os associa aos guerrilheiros a fim de criminalizá-los e atacá-los com balas. E se há algo que temos muito claro é que não estamos dispostos a repetir a experiência da União Patriótica, durante a qual aproximadamente quatro mil membros e líderes foram assassinados.
A história, quando não é manipulada, não mente: as autoridades têm agido com violência. Quando lembramos esses fatos para a equipe governamental, eles argumentam que não estão em Havana para falar nisso. Por quê? O que têm vergonha ou medo de dizer? Sem conhecer a história da violência política na Colômbia, como saberemos por que chegamos à situação atual, e como poderemos resolvê-la?
IM – Há três itens da pauta a discutir: garantias para exercer a atividade política, participação política e cessar-fogo bilateral, definitivo. Este último ponto discute a entrega das armas e em que condições isso será feito. Mas que fique claro: não se trata de uma negociação que visa à entrega de armas. Não podemos falar sobre esses pontos até que eles sejam discutidos na mesa de negociações, e serão os últimos da pauta.
O que vai acontecer com os paramilitares?
IM – Devem ser eliminados de maneira definitiva. Do contrário não haverá a certeza de que uma organização insurgente participará legalmente da política. Essa é uma condição básica para chegarmos a um acordo de paz. E é o governo que deve dar a seus generais a ordem para encerrar a estratégia de contrainsurgência do Estado.
Vocês estão determinados a pedir desculpas pelo sofrimento que causaram na guerra?
PC – Nós cometemos erros, é verdade, e alguns foram graves. Mas, seja lá o que a propaganda oficial diga, a agressão à população nunca foi uma estratégia das FARC. Ao contrário, nós a temos defendido do Exército e dos paramilitares, principalmente no campo.
Não tenho nenhum problema de dizer a uma mulher ou a uma família: “Sinto muito pela dor que causamos em consequência da morte da pessoa que você amava”. Mas o assunto é muito mais complexo. Vamos pedir desculpas? Muito bem. Então também convidemos as associações econômicas que financiaram a guerra e os paramilitares. Vamos convidar todas as instituições do Estado, porque eles garantem a repressão e a impunidade. Convidemos os meios de comunicação de massa, porque eles reproduziram a estigmatização feita pelos órgãos de segurança e isso levou a assassinatos e massacres. Os partidos políticos de direita também devem sentar-se à mesa e assumir suas enormes responsabilidades, assim como devem fazê-lo os ex-presidentes da República, que deram as ordens. Nem mesmo a Igreja Católica pode negar a sua responsabilidade! E os governos de Estados Unidos, Israel, alguns países europeus e outros que têm apoiado os vários regimes criminosos da Colômbia não podem ser deixados de fora dessa cerimônia. Todos juntos, podemos decidir quem são os terroristas e os assassinos do povo.
Você salienta, e com razão, que o governo, as Forças Armadas e os meios de comunicação de massa são responsáveis pela guerra psicológica e de propaganda contra a insurgência. Mas penso que um setor importante da chamada intelligentsia passou a atacar a luta armada que antes apoiava.
PC – A maioria dos intelectuais na Colômbia, e provavelmente no mundo, sofre de covardia, de acomodação ou de ambas as coisas. Quase todos foram colocados pelo sistema na matriz de mentiras, e são usados para “teorizar”, criar e repetir mentiras. Muitos deles gastam seu tempo escrevendo discursos contra a manipulação da mídia, mas quando o sistema dá início a uma campanha contra alguém, começam a falar como papagaios.
Na Colômbia, o sistema lhes disse que os guerrilheiros são culpados de tudo. Embora muitos acreditassem, ou ainda acreditem, que são pessoas de esquerda, repetiram em uníssono que somos responsáveis pela violência, pelo tráfico de drogas, pelos sequestros, a pobreza, o aumento da gasolina e até mesmo o alto preço das bananas. Asseguro a você que, se amanhã os pássaros pararem de cantar, esses “intelectuais” repetirão o que o governo e seus meios de comunicação anunciarão: que a culpa é dos guerrilheiros. Eles caíram em tal pobreza no que diz respeito à pesquisa e à argumentação que suas análises e teorias não resistem a nenhuma discussão, ao menos conosco. Pensam que, se discutirem com a gente, nós os mataremos depois. Não são nem sequer capazes de perceber que, se isso fosse verdade, na Colômbia haveria muito poucos “intelectuais” de esquerda. Seu cérebro não tem a capacidade de perceber que aqueles que salvaguardaram sua independência intelectual e política são aqueles que, diz o governo, mantêm amizade ou são cúmplices da subversão.
Devo admitir que não sou muito otimista em relação a esse diálogo. Acredito que a Colômbia e os colombianos merecem a paz com justiça social, mas sei que o Estado colombiano, e que os Estados Unidos – que defendem o Estado colombiano – são aqueles que decidem em última instância. Esperemos que a longa noite imposta pelo terrorismo de Estado cesse e que finalmente amanheça. Desejo isso de todo o coração.
PC – Olhe, as condições políticas na América Latina mudaram. Quem poderia imaginar o que aconteceu na Venezuela e na Bolívia, com a chegada de [Hugo] Chávez e de Evo [Morales] ao poder? Quem teria pensado que outros governos latino-americanos um dia exigiriam dos Estados Unidos respeito a sua soberania? Há coisas imprevisíveis, como o fim da União Soviética. Na Colômbia existe um acúmulo de fome, exclusão, injustiça e repressão. Tempo virá em que as pessoas simplesmente não aguentarão mais. Há um acúmulo de processos em andamento que vai estourar a qualquer momento. Há uma ebulição que pode explodir amanhã.
Além disso, a Colômbia não é uma ilha. Os países vizinhos pressionam o governo porque estão cansados do conflito, que os afeta. A Venezuela recebeu cerca de quatro milhões de refugiados colombianos, e o Equador, quase dois milhões. Acreditamos que há entre 13 milhões e 15 milhões de exilados colombianos nos países vizinhos, ou seja, a terça parte da população da Colômbia. E esses países devem fornecer-lhes moradia, alimentação e saúde. Por quanto tempo? Além disso, há a verba que eles gastam para proteger suas fronteiras. E isso só porque o governo colombiano insiste em não negociar um conflito que nunca vai ganhar! Pedimos aos representantes dessas nações que exijam a paz, para que todos os nossos compatriotas possam regressar a sua terra natal.
Estamos otimistas. Os revolucionários devem ser otimistas, mesmo nas piores situações. E acreditamos que a paz virá porque a merecemos. A outra possibilidade é a guerra total. É por isso que eu digo que chegou o momento, mas isso não significa que seja fácil. O processo de paz é muito complexo, mas acreditamos que seja possível. Insistimos na luta pela paz, e por isso não vamos cruzar os braços.
Tenho esperanças, embora considere que às autoridades e à oligarquia colombianas falte grandeza e humildade para começar a resolver esse conflito.
* Entrevista publicada originalmente no Brasil de Fato
Tradução e introdução: Baby Siqueira Abrão.