Há exatamente um mês, no dia 30 de março, o governo da Colômbia e o grupo guerrilheiro ELN (Exército de Libertação Nacional) inauguraram em Caracas, capital venezuelana, uma mesa de diálogo pela paz composta por delegações de vários países. Os diálogos e os pontos da agenda deverão ser discutidos nos próximos meses em encontros em Cuba, Equador, Venezuela, Chile, Noruega e Brasil.
Em entrevista exclusiva a Opera Mundi, Pablo Beltrán e Antonio Garcia, membros do Comando Central do ELN, foram taxativos ao dizer que a paz na Colômbia depende de uma mudança na sociedade e nas políticas públicas. “Ainda que se assine o acordo de paz, se essa situação não mudar, haverá outras guerrilhas e não haverá a paz durável e verdadeira que está nos discursos do governo”, diz Beltrán.
Agência Efe / Arquivo
Negociador Frank Pearl (esq.) e o chefe da delegação do ELN, Antonio García, apresentam plano de negociação de paz em Caracas
As mesas de diálogos pela paz entre o governo e o ELN e as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) têm causado controvérsia na Colômbia. Entre as forças contrárias ao processo que vem sendo desenvolvido pelo atual presidente, Juan Manuel Santos, estão o ex-presidente Álvaro Uribe e seu partido, o Centro Democrático, além de grupos paramilitares, cuja existência é negada pelo governo.
Segundo Antonio Garcia, apesar de o partido de Uribe estar se posicionando publicamente contra a forma como os diálogos vêm sendo conduzidos, conversas entre o governo e o grupo foram realizadas em 2005, quando Uribe era presidente da Colômbia.
“Não avançamos no tema, mas o diálogo existiu em Venezuela, em Cuba, em trabalhos formais de negociação informados à sociedade e nestas conversas nos acompanharam o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez e outros setores da política colombiana”, disse Garcia a Opera Mundi.
O conflito armado na Colômbia se arrasta há mais de meio século e ainda não tem data marcada para acabar. Ele surgiu no campo, com a organização de camponeses de esquerda em guerrilhas como as FARC e o ELN entre os anos 1940 e 1960.Às guerrilhas de esquerda somaram-se grupos paramilitares de direita contra as forças do governo. Todos os lados guerreiam entre si, vitimando milhares de civis ao longo das últimas décadas no país.
Alguns dados podem indicar, em parte, uma razão para o conflito armado: a Colômbia é o sétimo país mais desigual do mundo, segundo o Banco Mundial. E é justamente nas regiões mais pobres do país em que os enfrentamentos entre guerrilheiros, soldados e paramilitares acontecem com maior frequência.
Beltrán e Garcia, representantes do ELN, falaram a Opera Mundi também sobre a mesa de negociações pela paz, o sequestro de civis e suas impressões sobre a América Latina. Confira a seguir trechos da entrevista.
Opera Mundi: Setores da sociedade colombiana estavam cientes de que o ELN vinha mantendo diálogos com o governo de Juan Manuel Santos [presidente colombiano] já há alguns anos. Por que essas conversas foram mantidas em sigilo e por que vir a público com as negociações de paz agora?
Pablo Beltrán: O governo colocou três condições para que os diálogos acontecessem: a primeira que foi que os diálogos fossem diretos, a segunda é que as conversas acontecessem fora da Colômbia e a terceira é que todo o processo fosse confidencial. E esse trabalho foi confidencial até que se chegou a um acordo para uma agenda dos pontos que vão ser objeto das negociações. Esses seis pontos da agenda é que vão começar a ser negociados no Equador e em outros países, inclusive no Brasil.
OM: E como foi de que, depois de tantas tentativas, as duas partes chegaram a uma mesa de negociações?
PB: Desta vez ambas as partes estão mais maduras para entender o que é possível negociar e o que não é, e essas eram as condições para o início deste diálogo. Também existe na sociedade colombiana um clamor muito forte para que o conflito cesse. Nós temos um lema que diz “sempre junto ao povo”, então se o povo colombiano hoje está pedindo “vamos fazer um esforço para terminar o conflito”, nós estamos escutando esse clamor.
OM: Desde que começaram os debates públicos sobre o fim do conflito armado, alguns pontos estão causando controvérsia na sociedade e nos meios de comunicação colombianos, como, por exemplo, as indenizações para os ex-combatentes. O que vocês pensam sobre essa controvérsia?
PB: O direito à rebelião está na Carta das Nações Unidas, e quando uma organização como a nossa pega em armas, faz uso desse direito. Fazer um tratado de paz quer dizer que vamos fazer algumas normas que sejam válidas na Colômbia e deixar de fazer a luta armada. Mas nestas discussões tem que existir a garantia dos direitos das vítimas. Para que exista isso, temos que contar a verdade sobre o que aconteceu, construir uma memória coletiva e também o compromisso claro de que isso nunca mais volte a acontecer.
Neste ponto a discussão na Colômbia está muito complicada porque o governo não assume a responsabilidade pela guerra suja que aconteceu, dizem que foram dois ou três militares que tiveram suas condutas desviadas, mas como Estado não assume sua parcela de responsabilidade. Então nós dizemos que se não assume sua responsabilidade, na verdade oculta a verdade e não se arrepende disso, e isso quer dizer que vai reincidir nisso e o conflito vai continuar. Então é importante que existam verdade e memória coletiva para que o conflito não se repita, mas o governo diz “não existe tanta cadeia para a guerrilha”, e por sua vez, “eu não devo nada”. O Estado vem dizendo que não cobrará nada da guerrilha, mas também diz que não deve nada. Isso está sendo muito questionado na Colômbia.
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OM: Vocês pensam em fazer de maneira coletiva ou individual o reconhecimento da memória e da verdade?
AG: Nós entendemos que deve ser um processo coletivo que deve ser feito bem próximo da comunidade de vítimas, com a verdade, a justiça, a reparação e o compromisso de não repetição e de tentar um processo de reconciliação por meio do perdão, mas não o esquecimento. Quanto à memória e à verdade, existem dois momentos: o primeiro é mostrar o que de fato aconteceu. Depois entender qual foi a responsabilidade de cada parte nestes fatos, e isso se faz com a comunidade de vítimas. Isso porque o Estado colombiano é um dos responsáveis por permitir tudo isso acontecesse: pessoas retiradas à força de suas terras, massacres, etc. É preciso discutir que tipo de justiça vai ser feita neste caso, porque não pode ser a Justiça estatal, já que essa sempre esteve ausente. Quando o direito deixa de ser exercido em alguma sociedade, alguma coisa errada está acontecendo.
OM: Vocês estão de acordo com o marco jurídico das FARC-EP, que propõe uma Justiça transacional?
AG: O ELN foi muito claro com o governo colombiano nas mesas para o acordo de paz de que não podemos aceitar acordos de cuja elaboração a delegação do ELN não participe. A Justiça transacional nunca foi considerada pelo ELN, o que não significa que estamos fechados a buscar soluções, mas primeiro porque temos que ver o que foi que aconteceu com a Justiça anterior, por que não funcionou. Um acordo que não foi discutido com o ELN não pode ser considerado como já acordado conosco. Previamente tem que ser respeitada a agenda apresentada e dentro dessa agenda de temas que se discuta de maneira profunda e seriamente, mas não vamos nos submeter a acordos que não discutimos.
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O presidente colombiano, Juan Manuel Santos (centro), junto com a delegação do governo para os diálogos de paz
OM: Setores da sociedade colombiana seguem um pouco confusos sobre a postura de vocês em relação aos conflitos. Quantas pessoas falta libertar?
Antonio Garcia: O tema das privações de liberdade que a insurgência armada faz não é o objetivo central dos diálogos, mas sim buscar a solução política do conflito e a paz na Colômbia, que tem como pano de fundo muitos problemas para tratar nos campos econômico, social, político, cultural, de gênero, e em relação às vítimas [do conflito]. O tema das privações de liberdade pode ser de interesse para alguns setores da sociedade, assim como é de amplo interesse o tema das vítimas que somam mais de seis milhões. Usar a força midiática para abordar esse assunto específico, como se faz na Colômbia, é equivocado porque tergiversa a essência do que é a busca pela solução política. Isso não quer dizer que o Exército de Libertação Nacional não vá tratar do tema. Estamos dispostos a conversar sobre isso como um dos pontos da agenda de discussões, que tem a ver com as atividades, o cessar-fogo e as dinâmicas de ações humanitárias.
OM: Mas o presidente Juan Manuel Santos colocou como pré-requisito que a libertação dos reféns seja parte das negociações.
AG: A forma como Santos coloca [a questão] já tem outras implicações, porque ele primeiro nos convidou a um debate público e, ao pinçar esse tema, o converte em um tema de opinião nacional. Ao colocar [a libertação dos reféns] como uma condição, o ELN estaria em igualdade de condições colocando outro assunto parecido como condição. E assim bloquearíamos de início qualquer processo de diálogo. Uma negociação é saber que vamos estar de acordo em temas de interesse mútuo. Na lógica do diálogo, existem dois momentos: a primeira é discutir a agenda, e nessa agenda [a libertação dos reféns] será um dos assuntos dentro de uma lógica onde os outros temas não se percam porque esse também é do nosso interesse.
OM: Vocês acreditam que as negociações com o ELN podem ser mais rápidas do que com as FARC-EP?
PB: Nós preferimos fazer uma tarefa bem feita a terminar antes porque é um processo de guerra de mais de meio século. Temos que ser muito precisos porque é necessário constatar se existe ou não vontade política para cumprir o que se está acordando. Então, mais do que ter celeridade, é necessário ser rigoroso. Dizemos que o ELN não vai compactuar com coisas que não pode cumprir.
OM: Quais foram os pontos específicos das negociações do passado que não tiveram sucesso e o que está sendo feito de diferente dessa vez?
PB: Houve negociações que terminaram há quarenta ou trinta anos com um pacto em que a guerrilha FARC-EP se tornava um partido político, mas os paramilitares e os militares massacraram esse partido político que tinha três mil membros. E esse mesmo risco existe hoje também, de guerrilhas que aceitam a paz para que ocorra outro genocídio. E por isso é necessária muita vontade política. Atualmente o maior problema é que o grupo que está com Juan Manuel Santos está de acordo e negocia pela paz, mas o grupo do ex-presidente Uribe não, e esse é um grande problema.
OM: Vocês acreditam que a oposição de Uribe e de seu grupo político, que segue sendo muito forte na Colômbia, pode atrapalhar os diálogos?
AG: A insurgência colombiana está negociando com o governo e consequentemente com o Estado, não é uma negociação com os partidos políticos. Já a margem de governabilidade é assunto do governo. Quanto mais estabilidade se tenha com outros partidos, melhor, porque isso também significa a representatividade da sociedade no Estado. A questão é que o uribismo, força de ultradireita na Colômbia, confunde uma iniciativa de solução política negociada com submissão ou rendição, porque considera que a guerrilha é um agrupamento de delinquentes que devem ser submetidos à lei, ou seja, irem presos e depois estariam livres. O que estamos fazendo tem uma lógica totalmente contrária a isso.
[O uribismo] pensa que na sociedade não existem conflitos e se opõe à paz. Seria um assunto para o governo convencê-los para que fizessem parte da aliança política de Juan Manuel Santos e, dessa maneira, participar da lógica de paz. Dizem que o ex-presidente Uribe não gosta do processo de paz, mas estivemos dialogando em 2005 e negociamos por mais de dois anos. Não avançamos no tema, mas o diálogo existiu em Venezuela, em Cuba, em trabalhos formais de negociação informados à sociedade e nestas conversas nos acompanharam o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez e outros setores da política colombiana. Claro, agora não convém politicamente a Uribe dizer que já trabalhou pela paz.
OM: E quanto aos outros grupos guerrilheiros colombianos que não estão nas mesas discutindo a paz? Existe algum tipo de contato para que de alguma forma eles participem?
PB: O povo colombiano acostumou-se a resolver as diferenças políticas com armas, no Brasil isso não acontece com tanta frequência. Se esse processo de paz não resolver as causas que levaram ao conflito armado, essas duas guerrilhas podem até desaparecer [FARC-EP e ELN], mas outras vão surgir. Então é necessário mudar as condições postas que favorecem o surgimento dos grupos guerrilheiros, e essa é a discussão central das mesas. Temos diferenças políticas e queremos respeito à oposição política de esquerda, a ativistas sociais e de direitos humanos, mas isso não acontece. De um ano para o outro, cresceu em 35% o número de ativistas de esquerda assassinados na Colômbia, e isso significa que quem está contra o regime morre. Então se esse cenário não muda a população colombiana está obrigada a resistir e se agrupar para resistir. Então, ainda que se assine o acordo de paz, se essa situação não muda, haverá outras guerrilhas e não haverá a paz durável e verdadeira que está nos discursos do governo. E isso por isso somos tão insistentes na fala de que é necessário mudar essas condições que originam o conflito armado.
OM: Em algumas regiões da Colômbia existem grupos que não são guerrilheiros e que praticam atos violentos, como quadrilhas e organizações criminosas. No entanto, a ideia que se vende na imprensa é que a paz vai reinar se as guerrilhas e o governo firmarem um acordo. E quanto a essas organizações criminosas?
PB: Esse é o problema. O Plan Colombia era um plano feito pelos Estados Unidos para acabar com a droga no país e ele foi um fracasso, porque hoje o cultivo de coca e a produção de cocaína continuam crescendo. Todas essas máfias criam grupos armados para proteger seus interesses e para brigar com outras máfias, e isso está vivo e crescendo. Em determinado momento, os Estados Unidos usaram esses mesmos grupos uns contra os outros, e também para a guerra suja contra as zonas de esquerda, e esse é o problema do conflito na Colômbia. Agora dizem que já não são amigos, mas criminosos, e nós temos provas de que continuam utilizando essas organizações criminosas para assassinar líderes de esquerda, ativistas políticos e de direitos humanos. Então percebemos que não existe vontade política para mudar esse cenário, e mais: se o governo não reconhece esse problema isso significa que vai continuar acontecendo. Neste sentido o panorama é sombrio e não é bom.
OM: Qual a análise de vocês sobre este momento na América Latina, em que têm acontecido tantas manifestações e insatisfação popular com os atuais presidentes de esquerda?
AG: As décadas anteriores passaram por mudanças com governos de esquerda que buscavam sociedades mais pluralistas, democráticas, inclusivas; políticas de Estado diferentes que foram puxadas pela liderança dos presidentes Hugo Chávez [Venezuela], Evo Morales [Bolívia], Rafael Correa [Equador], a Frente Ampla no Uruguai, os Kirchners na Argentina, o Lula no Brasil, Daniel Ortega na Nicarágua, Sanchez Céren em El Salvador. Isso foi gerando um mapa político que não era somente a revolução socialista em Cuba, se não um continente latino-americano que fez com que houvesse a possibilidade de construir um futuro nesta região de maneira coletiva com políticas de apoio e de cooperação internacional e novos instrumentos que rompessem com a tutela dos Estados Unidos.
Todo esse processo foi atacado pelo império norte-americano, pela força das multinacionais energéticas, e outras grandes potências mundiais, ou seja, o grande capital. Eles perceberam que a América Latina começava a ser um continente diferente, de esperança, e então eles começaram a atuar com uma lógica de desestabilização que foi afetando os processos de acumulação social e política. Conseguiram derrubar Manuel Zelaya [em Honduras em 2009] e Fernando Lugo [no Paraguai em 2012], além da ameaça a Maduro na Venezuela.
Mas o caminho que foi iniciado não está morto. Ainda que os processos tenham sido difíceis, deixaram plantados uma esperança. Nunca antes os pobres, excluídos e necessitados haviam sido tão atendidos como foram nas últimas décadas, mostram as estatísticas, e claro, podem suportar uma dificuldade econômica e política em meio a uma crise mundial. Acreditamos que estamos passando por um momento e que vamos voltar a retomar a força que tínhamos, que vai nos colocar em outra dimensão como continente, como povo, e que vamos estar de mãos dadas para poder construir o futuro de uma maneira coletiva de que participe toda a diversidade da América Latina com as novas lideranças de agentes sociais, de partidos novos e renovados.